“Democracia no país é figura de retórica”

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17 min readApr 17, 2024

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Pedro Maciel

Francisco Iglésias é um dos historiadores mais importantes do Brasil. É o único historiador do País convidado a participar da Comissão Mundial da Unesco para reescrever a Segunda Edição da História Universal. Iglésias é autor, entre outros, de “História e Ideologia” (Ed. Ática) e “Trajetória Política do Brasil” (Ed. Companhia das Letras), comentários da História do Brasil desde o seu descobrimento até o golpe militar de 1964. A continuação da história até os tempos atuais foi lançado recentemente no México, com o título “Breve história contemporânea del Brasil” (Ed. Fondo de Cultura Econômica). Iglésias é um historiador que carrega a alma dos poetas, os olhos e o pensamento voltados para o passado que ainda é presente. Presente que propõe um futuro. Futuro que é sempre um tempo de utopia.

Você concorda que se o Brasil tivesse sido colonizado pela Holanda, ou pela França, nós estaríamos numa situação melhor?

Eu não concordo. Há territórios africanos ou asiáticos colonizados pela França, pela Holanda e, sobretudo, pela Bélgica, que estão numa situação terrível. Acho que o problema da colonização, do colonialismo, já foi posto definitivamente pelo filósofo Jean-Paul Sartre em seu livro sobre o colonialismo, em que ele diz que não há a ociosa discussão se há bom ou mau colonialismo; o mal é o colonialismo. Essa resposta do Sartre me parece decisiva. Não há colonialismo melhor ou pior. Todos são péssimos. Se o Brasil tivesse sido colonizado pela Bélgica, por exemplo. Não me consta que o congo belga seja muito melhor do que o Brasil ou qualquer país latino-americano.

1) A maioria dos portugueses que vieram para o Brasil eram assassinos, pessoas da pior estirpe, e que não eram aceitas pela sociedade portuguesa da época.

Eram os chamados degredados. Mas, e daí? A colonização da América do Norte, a colonização de países africanos, não foi feita pela elite dos países colonizadores. O grande número de colonizadores foi sempre do marginal ou daquele que sobra na sociedade nacional, na sociedade local. Que não encontra emprego, que não encontra uma situação definida, e então emigra, vai ser colonizador. E eles, evidentemente, pela sua própria condição, não podem ser a elite que os países colonizadores têm. São sempre pessoas pobres, pessoas humildes que, via de regra, têm um nível menos elevado do que o das outras pessoas.

2) Qual a diferença entre a colonização americana dos Estados Unidos e a colonização da América do Sul? Por que lá no Norte existe hoje condições sociais mais desenvolvidas? Ou não tem nada a ver com a colonização?

Aí tem a ver com a colonização, sim. Por um problema muito simples. É que a colonização latino-americana foi feita em condições muito diversas da colonização das chamadas 13 colônias inglesas da América do Norte. Essas colônias foram trabalhadas por ingleses que iam para se fixar definitivamente no território americano. Eles não iam para viverem uma aventura; para ganharem dinheiro e voltarem para a Inglaterra. Eles iam para ficar porque estavam fugindo dos problemas religiosos criados na Europa em geral, e, sobretudo, na Inglaterra, com o surgimento da cisão daquele bloco monolítico, que era o cristianismo. Da reforma luterana ou calvinista o quadro mudou e ficaram extremamente tensas as relações entre católicos e não-católicos. E depois os próprios protestantes se dividem em inúmeros grupos. O resultado disso é que eles preferem então sair e formarem uma nova pátria. Não é à toa que o nome dado à colonização inglesa na América do Norte é Nova Inglaterra.

3) O Brasil assimila com muita rapidez tudo que, de uma certa forma, é supérfluo. Eu estou falando como o país assimila tecnologia, telefone celular, moda… Tudo isso entra no Brasil com grande rapidez. Enquanto as mudanças sociais, que são essenciais, não se fazem tão rapidamente. Essa situação é uma herança do regime escravocrata?

Isto não é uma característica exclusivamente brasileira. Ela é geral. Há muito mais assimilação de coisas técnicas do que de coisas de natureza social ou de natureza psicológica mesmo. Essas mudanças de comportamento, por exemplo, são extremamente lentas, enquanto que as mudanças de natureza tecnológica podem se impor de um momento para o outro. É por isso que possivelmente, no futuro, quando se fizer a História do século XX, quando se quiser destacar o que aconteceu de mais importante, não se destacará nem a Revolução russa, nem a Revolução chinesa, nem a Revolução cubana, nem o fascismo europeu ou não-europeu, mas, sim, a chamada Revolução dos Costumes, que é uma coisa que se verifica, sobretudo, na segunda metade do século. A Revolução dos Costumes é sempre muito mais lenta. Mudar um costume, mudar uma prática, mudar uma ideia, é uma coisa muito mais penosa, muito mais lenta, do que mudar uma forma de transporte ou de alimentação.

4) A História tem ritmos rápidos e lentos. Os ritmos sociais no Brasil são de uma lentidão assustadora. Como o senhor explica isso? Por que há essa lentidão em relação às mudanças sociais?

Porque a mudança social afeta interesses já cristalizados. Esses interesses são muito mais defendidos do que interesses estritamente materiais. Por exemplo: o exercício do poder tem muito mais garra do que, digamos, a defesa da propriedade, que tem um poder enorme, tem uma força enorme, é claro. O interesse material sempre conta muito, mas o interesse pelo poder, pela sobrevivência no poder, pelo mando, é muito mais profundo e por isso se defende com unhas e dentes, tem muito mais garra na defesa. Isso explica a lentidão. Mas essa lentidão de ritmo não é uma característica brasileira só não, mas um pouco de época. Até meados do século XVIII o que havia no mundo era um desenvolvimento muito lento. Se se comparar o que é a vida na Roma antiga ou na Grécia antiga com a vida no século XVII não se notará diferenças substanciais. Mas se se comparar o que acontece desde a chamada Revolução Industrial com o que acontece hoje, vê-se que o ritmo é muito mais dinâmico, muito mais acelerado e, por causa disso, os historiadores falam agora no que chamam de “aceleração do ritmo da História”. Há realmente uma aceleração do ritmo da História. Eu vi, por exemplo, na minha vida, que não é tão longa assim, mudanças que antes exigiriam séculos. E foram feitas de um ano para o outro ou de uma estação para outra. Os costumes, por exemplo: a libertação da mulher — a mulher no trabalho, a mulher considerada igual e, realmente, igual ao homem; a superação dos preconceitos de natureza racial — o preconceito contra o judeu, contra o negro, contra as chamadas minorias sexuais. Hoje não há esse problema como existia antes. Até alguns anos atrás, a existência de uma mãe solteira era um escândalo.

5) Hoje em dia é algo tão comum que ninguém mais nem sequer nota isso.

E as mulheres hoje fazem a chamada “produção independente”. Elas fazem o filho independente de quem é o pai. Esta é a grande inovação do século XX.

6) Há um tempo atrás um historiador de uma universidade americana (Fukuyama), afirmou que presenciamos o fim da História. É possível presenciarmos o fim da História ou isso é mais um lero-lero desses historiadores conhecidos mais como ficcionistas?

Anunciar o fim da História é a constatação de uma falta de sensibilidade histórica. Porque a História não pode ter fim. Se ela é um processo de mudança, a categoria essencial do crescimento histórico é o tempo. E o tempo está sempre mudando, a cada época, a sua fisionomia. É impossível chegar-se a um momento em que se diz: “a História acabou”. Acabou, por que? Ela pode mudar de forma, mas a mudança de forma é uma constante ao longo de todos os tempos.

8) O historiador Evaldo Cabral de Melo, irmão do poeta João Cabral de Melo Neto, afirmou recentemente que só acreditam que a História vai acabar três categorias de pessoas: os cristãos, os judeus e os marxistas. Você concorda com esta tese?

Acho que é uma ideia a ser questionada. Os cristãos falam no fim da História porque partem de uma crença, de uma fé e, não, de uma observação da realidade. Os judeus também, pela mesma razão. Eles têm uma escatologia; acreditam em princípios e fins. E os marxistas — não Marx, mas o chamado marxismo, que a gente liga à chamada vulgata stalinista — depois da Revolução russa deturparam o marxismo e, sobretudo, o empobreceram. A obra do Marx tem muito pouco a ver com a pregação do que se chamava marxismo na União Soviética. Quando eu penso que o próprio Stalin, que ao que me consta não era um homem de formação intelectual, ousava escrever livros sobre dialética, sobre problemas filosóficos de muita transcendência, e impunha isso como verdades incontestadas… Os marxistas então acreditam numa paz eterna, acreditam no fim dos conflitos. Eles partem da idéia de que tudo é luta de classes e, se se resolver o problema da luta de classes, não haverá mais problema. Então a História entraria num ritmo de apatia, de harmonia entre todas as partes. Isso é uma utopia. Nunca aconteceu, e eu tenho a impressão de que nunca vai acontecer porque o debate, a luta, é uma característica normal do homem. Sempre existiu e deverá existir porque faz parte da natureza humana.

9) Você pode ser considerado um marxista?

Eu hoje nem sei mais o que é o marxismo, porque ele se vulgarizou muito e paga um preço muito alto por isso. Todo pensamento que se generaliza muito, se torna popular, paga um preço alto. O kantismo, por exemplo, não paga esse preço porque o Kant nunca foi popular. O Reagel nunca foi popular. O Marx e o Freud, por motivos bem compreensíveis, são autores que são grandes cientistas sociais, grandes pensadores, mas se tornaram extremamente populares. E por essa popularidade eles pagam um preço muito alto, que é a deformação do pensamento deles. O pensamento deles é simplificado, empobrecido. Vulgarmente, dessas pessoas que têm uma interpretação para tudo diz-se “o Freud explica”, “o Marx explica”. Não explica coisa nenhuma… O Marx e o Freud não têm nada a ver com as bobagens que são ditas em nome deles.

10) A principal função do historiador é a de resgatar os dramas do passado para a experiência do presente?

A principal função do historiador é entender a vida do homem através dos tempos. A figura essencial aí é o tempo. O tempo está para a História assim como o espaço está para a Geografia. Eles é que explicam as coisas.

11) Walter Benjamin, da Escola de Frankfurt, certa vez declarou que a História é um amontoado de ruínas. Você então não concorda com essa tese?

Acho que isso é uma frase. Uma frase de efeito. Não concordo. Por que um amontoado de ruínas? A não ser que a gente queira julgar que tudo o que aconteceu no passado é negativo. E isso não é verdade. No passado, como no presente, há momentos afirmativos e momentos negativos.

12) Talvez porque essa frase decifre a vivência pessoal dele, o drama pessoal que ele viveu sendo um judeu perseguido na época da Segunda Guerra.

Exatamente. Por causa da época em que ele viveu. Basta que se atente para a biografia dele. O Benjamin teve uma existência toda de traumatismos, que acaba da maneira mais trágica possível. Aí pode muito bem ser uma projeção de um drama pessoal para o plano universal, para o plano da História, para o plano que o transcende e que atinge a humanidade inteira.

13) O que você diz sobre estes historiadores que produzem textos como se fossem ficcionistas?

Eu não tenho nada contra eles. Mas se eles produzem, como se fosse estudo, um texto ficcional, por que não fazem então uma obra de ficção? Façam um romance. Façam uma peça de teatro. Por que eles vão dizer que aquilo alí é História se é uma coisa toda fantasiada?

14) Até o século XVIII o Brasil foi um país vulnerável a uma implantação estrangeira pelo Nordeste. O Nordeste brasileiro não foi entregue à Holanda por que houve reações nacionalistas em Portugal?

Em Portugal eu não digo. As grandes reações foram daqui mesmo. O território brasileiro foi defendido sobretudo pelos brasileiros: pelo índio, pelo preto. E pelos portugueses também, é claro. Houve um momento em que Portugal chegou a imaginar a hipótese de entregar o Nordeste aos invasores, no caso ao invasor mais bem sucedido, que foi o flamengo, que fez uma dominação longa no século XVII. Outras tentativas, as francesas na Baia de Guanabara ou lá no Maranhão, foram experiências episódicas, que duraram muito pouco tempo e a expulsão deles foi feita com relativa facilidade. Enquanto que a dominação flamenga persistiu por alguns anos, mas o invasor acabou sendo expulso sobretudo pela ação dos brasileiros.

15) A unidade brasileira se deve principalmente à Batalha de Guararapes e ainda a problemas internos na Holanda, com o Guilherme II. Ou você acha que houve outros problemas que desconhecemos?

Há esses problemas e deve haver outros também. O essencial é que não havia possibilidade de permanência da conquista flamenga. A conquista flamenga foi feita por um Estado fraco, os países baixos eram de população muito pequena, mas tinham, naquela época, a primazia na vida financeira do mundo. Eram a maior potência financeira. Mas faltavam ao dominador flamengo algumas coisas: população; recurso territorial que eles não tinham na própria terra deles, onde viviam numa área extremamente reduzida e que havia sido conquistada, em grande parte, ao mar, da qual eles muito justamente se orgulham. Então faltava possibilidade de uma dominação mais dilatada; e os holandeses já dividiam o poder com os ingleses, porque a Inglaterra já estava em fase de ascensão, tinha uma base territorial muito mais ampla, uma população muito superior e uma organização política muito sólida. A Inglaterra representa na História moderna e contemporânea um papel de organização política equivalente ao do Império Romano na História antiga.

17 ) Tiradentes foi um bode expiatório ou ele realmente foi um dos líderes da Inconfidência Mineira?

Eu acho que ele realmente foi o líder. E ele foi o único grande líder, porque os outros tiveram uma participação mais ou menos epidérmica, mais ou menos episódica, enquanto que o Joaquim José, “O Alferes”, foi o único que viveu integralmente a causa. Então ele deve ser, e é, muito justamente considerado o líder do movimento. Apesar de ser ele, dentre os grandes nomes dos inconfidentes, o mais modesto. Ele era o mais pobre, tinha menos formação, enquanto que os companheiros dele foram os homens mais cultos que viviam na Quintaria, gente formada na Europa, gente de alta titularidade intelectual, de alta titularidade política e de alto poder financeiro. Ele era quase que um “joão-ninguém”, um homem humilde, colocado num plano mais modesto da sociedade. Mas o grande líder, a cabeça, o mentor e o grande realizador do ideal inconfidente foi o Joaquim José. Ele não é bode expiatório. Ele foi, realmente, a grande figura.

18 ) O movimento dos inconfidentes tem alguma coisa a ver com a maçonaria? Há pouco tempo descobriram alguns documentos em Ouro Preto. Você confirma?

Parece-me que existe estes documentos. Há uma certa ligação. Mas é sempre difícil se estabelecer com rigor — para o historiador que deve lidar com um certo rigor — qual é o real papel de uma sociedade que é secreta por natureza. Se ela é secreta, é sigilosa, ela não divulga seus documentos. Esses documentos podem ser descobertos aqui e alí, mas não fazem um conjunto orgânico, harmonioso. E no mundo inteiro a maçonaria sempre teve esse papel de repúdio às ideias feitas, de defesa de coisas novas, então é perfeitamente razoável que a maçonaria se entrosasse com um movimento inconfidente. Agora, qual foi a real extensão desse relacionamento entre maçons e inconfidentes, nunca se saberá com muito rigor porque a maçonaria era secreta. E como sociedade secreta ela terá sempre seus mistérios. Se até aquelas que não são secretas têm seus mistérios, imagine uma que é por natureza secreta.

19) Em seu último livro — “Trajetória da Política Brasileira” — você comenta a História do Brasil desde o seu descobrimento até o golpe militar de 1964. Sobre qual ponto de vista político você comenta a História brasileira?

Eu não determinei um certo ponto de vista. Eu procurei fazer a reconstituição da vida política desde os primeiros tempos até 64. Parei em 64 por motivos de natureza prática. Eu escrevi esse livro a convite de uma editora espanhola. Tanto que ele apareceu na Espanha antes de aparecer aqui no Brasil. E como a editora espanhola é uma editora bastante conservadora eu achei que tratar dos governos militares era incidir em sérios riscos. Não só internos brasileiros, como relativamente à própria editora, que é uma editora que tem um ponto de vista muito conservador, excessivamente conservador, a meu gosto. Então eu preferi não tratar do período militar.

20) Você teve algum problema político na época do regime militar?

Tive, mas muito ligeiro. Não vou me fazer de herói, não. Fui chamado para prestar declarações duas vezes, uma coisa muito tranquila, muito pacífica, e o que me perguntavam eram coisas tão tolas e frequentemente tão erradas que não me deram a menor inquietação. Não me deram também nenhum aborrecimento. Eu fui chamado para responder a umas tantas perguntas, respondi, e terminada a inquisição eu vim pra casa e nunca mais me perturbaram. Me perguntaram só banalidades. Por exemplo, se eu tinha ido a um jantar em homenagem ao Jorge Amado. Eu não conheci o Jorge Amado, então eu não iria a um jantar em homenagem a ele. Foram coisas muito secundárias. Eu nunca tive militância política de fato importante. Mas há algumas coisas mais importantes do que ir a um jantar de Jorge Amado. Um jantar de Jorge Amado é uma coisa social. O Jorge Amado é um autor extremamente popular e muito cultivado pela alta burguesia, amado pela alta burguesia. Este prestígio que ele tem é muito dado pela imprensa que badala muito o nome dele.

21) E ainda nós temos o Graciliano Ramos, o próprio Guimarães Rosa, que eram muito prestigiados.

Têm, mas são autores mais difíceis. Jorge Amado se beneficia aí de uma certa facilidade da literatura que ele faz. Ele faz uma literatura que é realmente de um grande poder de penetração popular. Porque ele faz estórias que são bem engendradas, casos populares. Acho que é em “Terra do Sem-Fim” ou em “São Jorge dos Ilhéus” que ele diz assim: “eu vou contar uma estória e uma estória de espantar”. E ele conta realmente muito bem aquela fabulação em que ele mistura o social com o erótico, que é uma fórmula quase sempre de êxito. É um autor que tem um êxito enorme. Estes nomes que você lembrou, e até outros ainda, podem ter uma obra mais consistente do que a de Jorge Amado, mas nenhum tem uma obra com a garra popular dele. A obra do Rosa, por exemplo, é uma obra difícil. Uma pessoa que não tem uma certa iniciação literária não consegue ler o “Grande Sertão” de jeito nenhum.

22) Você concorda que hoje em dia a utopia foi descartada do imaginário cotidiano?

Não. Acho que ela nunca será descartada do imaginário porque o homem se alimenta muito de coisas assim, quase sempre diante de uma realidade que é penosa, que provoca sofrimento. É sempre uma espécie de fuga normal a pessoa cultivar um ideal de mudança ainda que descambe para a utopia mais descabelada possível, como frequentemente acontece com as utopias. Acho que a utopia é uma constante no homem e não vai desaparecer nunca.

23) Quando eu digo que a utopia foi descartada do imaginário cotidiano, eu estou pensando numa geração de agora, em jovens que se tornaram velhos, e também em eruditos que não conseguem propor uma sociedade do futuro.

Não conseguem propor às vezes porque não são capazes de propor. Para se propor uma sociedade do futuro é preciso ter uma certa imaginação. E nem todo mundo tem a imaginação do Thomas Moros, do Campanella, do Hoeques, da H. G. Welts, que são os que constroem as utopias. Há temperamentos que são avessos a utopias. Preferem a coisa mais concreta. Na utopia há muito de ficcional. Esses autores de utopia seriam excelentes ficcionistas. A utopia é uma obra de ficção.

24) A democracia é a aplicação das decisões da maioria, sem com isso desrespeitar muitas minorias?

A democracia é a concretização do que é votado pela maioria, do que é votado pelo povo. Povo aí em sentido muito genérico. Mas sempre haverá uma voz dissidente, sempre haverão minorias. A minoria tem que se submeter à maioria, é claro. Esse é um dos principios da chamada ordem democrática. Mas a democracia é um modelo político de muito dificil realização. Nós percebemos isso sobretudo agora com essas dificuldades que não apenas o Brasil, mas o mundo inteiro, está conhecendo com o falseamento do regime democrático. Isso que acontece no Parlamento. O Parlamento, que é a expressão popular através do voto, será que corresponde hoje a um ideal popular? Eu tenho minhas dúvidas. Porque o Parlamento hoje é manobrado — e sempre foi — por altos interesses financeiros. Mas hoje esses interesses são tão vultosos, são de tal maneira fortes, que eles subjugam e distorcem a representatividade que o Parlamento teria.

25) Será que o ideal de democracia seria cada povo ter o seu modelo democrático, que permitisse a reivindicação de direitos e o livre conflito de crenças e opiniões?

É claro. Um modelo em que tudo que é pensado é respeitado e é posto em prática, ou não, mas é acatado, é respeitado, é objeto de consideração por parte, inclusive, daqueles que discordam do que é preconizado pela maioria.

26) Será que o paradoxo das democracias contemporâneas não seria a expansão do Estado em que a máquina estatal busca comandar toda a vida social? Será que a sociedade não deveria forçar um recuo dos espaços ocupados pelo Estado?

Acho difícil. Os espaços ocupados pelo Estado são muitos e o Estado sempre ocupou esses espaços e dificilmente ele deixará de ocupar. Se há um País em que o Estado sempre foi uma presença absorvente é a República dos Estados Unidos que, no entanto, é vista como um exemplo de democracia. Existe Estado mais intervencionista na vida econômica do que a República dos Estados Unidos? Não existe.

27) A Inglaterra também é um Estado muito intervencionista.

A Inglaterra também é intervencionista. Até aqueles países nórdicos que são vistos como realizadores do mais puro ideal democrático são altamente intervencionistas, o Estado ocupa neles um lugar muito grande, muito importante. Esse debate de estatização, de privatização, é um debate promovido em geral pelas classes dominantes que são sempre a favor do Estado quando o Estado os beneficia e são contra o Estado quando o Estado os maltrata.

28) Ressalto isso porque penso que o ideal seria o Estado intervir em áreas essenciais, em áreas sociais como a educação e a saúde e, não, ter o monopólio do petróleo ou então vender escova de dente como tem uma fábrica no Brasil. O senhor não acha que chega a ser até piada nos tempos atuais?

Sim. É claro que o Estado deve monopolizar aquilo que é de interesse público geral e que, por não dar lucro, jamais será feito pela iniciativa privada. Escolas e certas coisas têm que ser feitas com investimento do Estado, é função do Estado garantir o bem-estar de todos os cidadãos que estão sob a sua tutela, sob a sua guarda.

29) É possível pensar numa sociedade ideal?

Eu tenho um pouco de dúvida para responder a essa pergunta porque não sou muito dado a utopias. Eu acho que haverá sempre problemas, haverá sempre certas dificuldades. De maneira que a sociedade perfeita eu vejo como uma utopia. E como eu sou incapaz de imaginá-la em funcionamento, em estado concreto, eu prefiro escapulir a essa pergunta. Se você me pedisse um modelo de sociedade eu não o teria para apresentar.

30) E qual o modelo que mais se aproxima dessa sociedade ideal?

É o modelo democrático, evidentemente. Porque o modelo democrático é aquele que, pelo menos teoricamente, é sem dúvida perfeito. Agora, se ele apresenta dificuldades, se ele apresenta defeitos na prática, isso é outra estória. Mas ele é o modelo ideal. Porém há vários modelos democráticos. É preciso escolher qual o modelo democrático que nós vamos adotar.

Pedro Maciel é escritor, jornalista e artista visual, autor dos romances “A noite de um iluminado”, Ed. Iluminuras, “Previsões de um cego”, ed. LeYa, “Retornar com os pássaros”, ed. LeYa e “O diário perdido de Shakespeare”, ed. Iluminuras, entre outros.

Publicado no Jornal do Brasil, caderno Ideias/Livros, 18 de janeiro de 1997

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