Da poesia portuguesa contemporânea — Gisela Gracias Ramos Rosa e André Domingues

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
3 min readJan 14, 2018

--

André Domingues

Vão passando pelos pingos da chuva, estes novos autores, onde apenas meia-dúzia chegam aos jornais. Que fique claro que este texto não se pretende como crítica, mas como uma nota de leitura sobre os autores.

Gisela Gracias Ramos Rosa acaba de publicar O Livro das Mãos, na colecção Clepsidra, da editora Coisas de Ler. A autora já havia publicado Vasos Comunicantes, em co-autoria com António Ramos Rosa, que teve a sua reedição em 2017, mas também A Tradução das Manhãs (2013), com a qual conquistou o Prémio Literário Glória de Sant’Anna em 2014. Reaparece agora com este novo livro, com uma linguagem vibrante e, ao mesmo tempo, serena e luminosa, onde se canta assim:

Habito uma grande extensão de terra contínua/árvore, continente, arco de amor e contingência./Toco o chão e pressinto a essência o vagar./Experimento a presença húmida das pedras,/ um triângulo de sol, matéria forma, sonho/olvido.

Gisela Gracias Ramos Rosa

A poesia de Gisela traz a delicadeza dos pequenos gestos e do amor às coisas, uma planura do olhar que se faz cúmplice da vastidão da terra e de um certo olhar que procura, ainda, o sagrado que há no mundo, nesse desejo quase místico que ressuma neste verso magnífico: “Escrevo como se estendesse raízes e sou/ um ramo adormecido alcançando em silêncio.”

André Domingues

André Domingues é um autor discreto e quase nada se encontra e se sabe sobre ele, a não ser a sua obra, que fala por si. Já conhecia o seu livro Dramas de Companhia, editada em 2016 pela Companhia das Ilhas, sobre a qual a Hugo Pinto Santos escreveu na Revista Caliban.

Se esta obra já revela um fôlego e uma oficina de escrita assinalável, Tempestade de Mãos não faz senão confirmá-lo como autor. Fugindo à tirania de uma poesia «agarrada ao quotidiano» que se tem vindo a fazer na última década, André Domingues arrisca numa direcção que hoje se pode considerar de risco, a da poesia lírica, sem que isso signifique desbragamento ou ausência de vigilância. Resulta antes num trabalho de alta voltagem poética, cujo segredo talvez esteja no modo de uma contensão — e não contenção — desse lirismo. O poema “Nenhuma música” é um exemplo desse domínio:

Minha irmã, meu veneno de luz, tenho fome/nenhuma sustentação me ocorre agora/entre o dia informe e o calor da derrota//só tenho palavras parecidas/com a desigualdade de tons//nenhuma música/nem o pequeno aparato/de uma solidão sem nome/nem a deflagração/de um reino/de um pranto/ou de um negócio//mas a consternação/a suave experiência da morte (…)

Sobre este livro escreveu José Mário Silva recentemente, no Expresso, dizendo que esta era «uma poesia de altos voos, feita de imagens fortes, energia telúrica, rigor verbal». É, sem dúvida, uma escrita que, mais do que escrever, inscreve, sulca e rasga, não temendo o turbilhão dos sentimentos, na alegria ou na desolação profunda, esse magma em que mergulha, para dele sair incólume.

Porém, o que provoca mais prazer na leitura deste livro é sobretudo o reconhecimento de uma voz poética que não parece preocupada em encontrar filiações ou âncoras, que não obedece senão a si mesma, nesse sentido verdadeira. Que ela seja feita de múltiplas vozes, ou tecida pelo diálogo com uma tradição lírica da poesia contemporânea, talvez seja menos importante do que ressaltar a sua singularidade e a sua beleza convulsa.

--

--

Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.