Cosmicidade e comicidade em Natália Correia

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
7 min readMar 16, 2019

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@José Emílio-Nelson

Tertúlia em casa de Natália Correia (à direita)

Na abordagem elementar da poesia de Natália Correia, como a que me proponho apresentar, saliento dois pontos cardeais que me nortearam nessa tarefa insensata: a COSMICIDADE e COMICIDADE [descomedimento — hybris].

Numa dialéctica (aparentemente antitética), a analogia entre COSMICIDADE e COMICIDADE, se afirma como característica fundadora da sua poética, com nuanças surrealistas, atenuações do Barroco, como dinâmica discursiva, magia sempre presente na sua escrita plurissignificativa: na obra poética, na obra teatral, romanesca e ensaística.

COSMICIDADE

Na INTRODUÇÃO à edição da POESIA COMPLETA de Natália Correia,[edição póstuma preparada pela autora que a intitulou de O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS, datada de 1999], Natália Correia alude à COSMICIDADE e a define como sendo ‘o postulado de uma conexão cósmica da poesia com uma linguagem englobante da música e das matemáticas em que está estruturado o Universo’. (Deduzo que se refira à ‘harmonia das esferas’ — crença pitagórica que relacionava o Universo com a harmonia e a divina proporção musical que o sustenta).

Nos seus poemas crísticos, o imaginário ascende ’ao miradouro do Espírito‘ para enxergar ‘sob forma mesmo estruturalmente dramática, ode, sátira ou humor que, como poesia, surge onde não há solução’.

Natália Correia ‘debate-se com a má eternidade e com a má infinitude’(diria Maurice Blanchot): a poesia surge ‘onde não há solução’. Onde não há solução permanecerá, assim interpreto, é a palavra indizível, inacessível, palavra esotérica, sob a forma teosófica, como interrogação ao insondável, religiosidade simbolista por empréstimo como

EQUÍVOCO CÓSMICO [INÉDITOS 1955/57]

Se meu germe, por equívoco, Teu gesto

Neste planeta funesto semeou,

Criar foi inventar-me o resto.

Perdoo-te a mentira que aqui sou

Pela verdade que lhe empresto.

Perspectiva-se neste poema, tanto quanto creio, o fingimento (na acepção pessoana) que se esclarece pelo que se lê no trecho inicial de EXÓRDIO [O ARMISTÍCIO (1985)]:

‘Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses. Porque mais importante que os deuses existirem é acreditarmos neles. E mesmo que, existindo, nos ignorem, não sejamos nós a ignorar a sua autoridade primitiva que, nutrindo de segredos divinos as florestas, os rios e os ventos, faz correr o sangue em nossas veias. Usando este saber, menos dano nos farão os salteadores do verdor da natureza. Supersticiosos como todos os malfeitores, colhimento lhes será o terror sagrado de depredarem flores, árvores e fontes em que os deuses são tão reais quanto elas são. Baste-vos esta ciência: onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho e Espírito.’

Em VOU DAS ANTÍTESES PARA O ABSOLUTO, [INÉDITOS 1947/55] busca o rumo constante da interrogação que a reflexão permite:

Não expulsarei os deuses e os demónios

Que discutem a posse da minha alma.

Esse conflito, esse entrelaçamento do anticlericalismo e da interrogação do Absoluto, de se lhe abeirar rejeitando-o, de o afastar pretendendo alcançá-lo, numa contradição assumida (ora com fingimento, ora com magia ‘dum ritmo exterior’), numa subversão que atravessa toda a obra da escritora, que se sintetiza no neologismo unamuniano, como se lhe referem em Espanha: MATRIA (conceito formulado anteriormente a Unamuno, mencionado pelo padre António Vieira, e revisitado por autores contemporâneos, como o expressa Luís Adriano Carlos no ensaio A MÁTRIA E O MAL EM NATÁLIA CORREIA).

O pendor metafórico da sua poesia permite irrupções de imagens que configuram uma irracionalidade da busca da razão, uma constante escondida adesão à dúvida e ao ímpeto para elaborar uma verdade que deuses e demónios disputam ou discutem, uma afirmação da sexualidade numa ânsia que se proclama noutro poema de EXÓRDIO:

‘Sejamos tranquilamente amantes das coisa divinas, sem o que a vida é o heroísmo reles de um aborrecimento.’, ou mais expressivamente, se lê num verso dos SONETOS ROMÂNTICOS: ‘Creio na carne que enfeitiça o além’.

O Absoluto, ‘cosmicidade do idioma poético’, manifesta-se como ‘a liberdade cósmica’, que é sublinhada amplamente na tão imensa música, música como acesso revelador da palavra em falta, a que Natália Correia alude, no contexto em que, como escreve, ‘nada é isolável’.Define, em ‘O POEMA’ a inventividade da poesia como ‘Pura intenção/ de cantar o que não conhece.’.

Lê-se num soneto do ciclo: ROGANDO À MUSA QUE TORNE CLARO O CORAÇÃO OBSCURO [SONETOS ROMÂNTICOS (1990)], algum tormento de interrogação do estético por detrás da simbolização da infinidade divina:

De um emboscado deus os sons que escreves

Vêm secretamente do infinito.

É para escrever que as tuas mãos são leves,

Submissas asas de um misterioso espírito.

Alheia te é a música que atreves;

Teu é o fado, o precipício, o rito

Da dor que faz passar entre horas breves

Té mister, poeta grácil de olhos tristes.

Desafias os astros? Não te gabes.

És sábio de saber que nada sabes.

Estás a mais no mundo e não existes.

COMICIDADE

Revela-se, em Natália Correia, um misticismo secularizado que lhe advém da independência com que ‘sem intento malévolo contra instituições democráticas’, combate ‘o desvario de extremismo’, ‘o imediatismo revolucionário’, e não se ilude com as soluções políticas adoptadas, revelando uma consciência céptica quanto ao pós-25 de Abril, embora positivamente interventora no campo político, deputada da Direita, empreendendo, na atitude, algo que ironicamente parece ser a palavra da auto-convicção de uma autoridade moral pública superior. Hoje se justifica (ou se lê) a EPÍSTOLA AOS IAMITAS (1976), pela realização poética alcançada. Poesia sem constrangimentos limitadores do seu assombro, da metáfora transgressora e exultante numa comicidade que é ‘um poema para ensinar risadas de camélias aos animais do medo’. [COMUNICAÇÃO — 1959]. É surpreendente a sua poesia pela articulação do imaginário poético dos ‘versos parodísticos’ com a intervenção política datada, sem nada perder nessa atitude extraverbal. Hoje justifica ler-se também as suas crónicas, como contextualização das poesias políticas. No fundo, trata-se de uma coerência entre a afirmação de uma poderosa presença do ‘Deus Riso’ e o seu aperfeiçoado labor metafórico: simultaneamente ética (hesito em classificá-la de ética idealizada) e incontestada ambição estética.

O riso de Natália Correia cumpre ‘a função útil do riso’, a significação social como defende Bergson [, na sua obra O RISO: ENSAIO SOBRE A SIGNIFICAÇÃO DA COMICIDADE] para quem o riso é ‘inteligência pura’.

Atenda-se que em A DEMIURGIA DO RISO, Natália Correia escreve como epígrafe:

E cada vez que celebrei o

Deus Riso floresceu em mim

Um novo invento.

O riso de Natália Correia ‘é o seu reino inesgotável’, como fonte de invenção, dado que há uma prioridade de ordem histórica no humor ‘jocoso de travessuras’ como no hilariantemente cómico, riso de zombaria quando se refere a episódios parlamentares, que reune no poemário CANTIGAS DE RISADILHA (entre 1979 e 1991.

Cito:’O acto sexual é para fazer filhos’ — disse ele’ [Refere-se ao deputado João Morgado, e à sua posição conservadora, no debate sobre a legalização do aborto.]

‘Já que o coito — diz Morgado —

Tem como fim cristalino,

Preciso e imaculado

Fazer menina ou menino;

E cada vez que o varão

Sexual petisco manduca,

Temos na procriação

Prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,

Lógica é a conclusão

De que o viril instrumento

Só usou — parca razão! —

Uma vez. E se a função

Faz o órgão — diz o ditado —

Consumada essa excepção

Ficou capado o Morgado.’

A poesia satírica da cidadã Natália Correia contempla corrosivamente, com directas e facilmente decifráveis referências, com a comicidade e o riso (Vladimir Propp), o contexto sócio-histórico.

Natália Correia imprimiu no jornal da campanha eleitoral autárquica por Lisboa em que concorreu Marcelo Rebelo de Sousa o CANCIONEIRO JOGO-MARCELINO [1989] [,de que cito, aleatoriamente, o soneto]:

MARCELO É BOM BAILARINO

É entrar, venham ver a maravilha

Das variedades na feira marcelina!

E entre atracções à escolha a que mais brilha

É de Marcelo a fúria bailarina.

Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,

Dançando a valsa como quem flores pisa,

Baila Marcelo até na corda bamba

E os alunos de Apolo inferioriza.

Topa, enfim, de cavaco o maçarico

No dernier cri da dança uma golpada:

Rebolar-se no novo sassarico

Para no partido acabar tudo à lambada.

No conjunto da sua obra, o humor, uma outra forma de sátira, é a homofonia ’Humor=Amor’ na desconcertante sexualidade da poesia de Natália Correia, e nessa direcção, será possível concluir, numa síntese que a própria autora escreveu:‘Disparei contra a univisualidade do mostrengo das coacções fascio-puritano-pirosas’.

Em conclusão, que não conclui nada: a poesia vária de Natália Correia mostra que a Cosmicidade, ‘o sopro da Alma Universal’ contém a inversão metafórica (Gérard Genette) da Comicidade.

Mesmo na interrogação e afinidade ao Absoluto [velhos Tratados Espirituais e Filosóficos, matemática e música] há um momento do tempo que decorre no tempo (1), em sentido figurado, que é considerado, aquele que revela como fundamento vinculado do processo criativo da COSMICIDADE que, sublinho, não se separa da COMICIDADE.

Disso nos apercebemos ao ler a primeira estrofe de JESUS NUM BAR:

Já rio e raio foste

E o vício do vinagre

Te afeiçoou aos bares

Onde homem te fizeste

Com a ruga celeste

de chegares sempre tarde.

Na obra literária de Natália Correia, a Cosmicidade (o que se recentra na intuição do Absoluto), entrecruza-se com a Comicidade das coisas deste mundo.

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[(1)Segundo Søren Kierkegaard, ‘ a música tem em si’ ‘um momento de tempo, mas não decorre no tempo, a não ser em sentido figurado’

JOSÉ EMÍLIO-NELSON

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