“CORONAVÍRUS NA CHINA” Poesia&Fotografia de Anthony Tao

Sara F. Costa
Revista Caliban issn_0000311
6 min readMar 8, 2020

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Tradução de Sara F. Costa

Pequim

I. O coronavírus na vizinhança

Sorrimos através de máscaras,
dizemos olá com as sobrancelhas,
abrimos portas

para lembrar
que ainda cá estamos. A senhora Chen, da mercearia
já foi, voltou à sua terra.

O velho Li, o barbeiro, também foi
e levou o rádio. Zhou, o serralheiro,
deixou apenas um número de telefone, Min escapou

com seus queridos arrependimentos, e
a família Zhang, que faz pão sírio,
nunca retornou: ausentes

para o ano novo, lia-se no sinal
da porta.
Nós que cá ficamos

fazemos vénias corteses, apanhamos
no correio
a caminho da loja de massa dos Tang.

O céu está limpo, grunhimos. O ar está limpo.
Estamos cercados por uma bondade quase
irreal. As gargantas doem porque falta carvão

falta-nos o alcatrão. O que quer que falte,
seja insurreição ou dizer o que pensamos
da burocracia, o que quer que seja

que desejemos
as doenças que curamos, a raiva
ou a febre, fazemo-lo em ambientes fechados.

Fechamos as cortinas e esperamos
até a chaleira ferver, e é aí que dizemos
exatamente o que queremos dizer.

II. O coronavírus nas ruas

Os vírus tinham nome e sobrenome
até serem demasiados para se contar.
Espetamos-lhes com máscaras na cara

e chegados a esse ponto, que importam
os nomes? Trancamo-los
em caixas seladas, essas caixas dentro

de caixas maiores construídas em dez dias. Mas
ainda assim eles vazaram para as ruas,
confusos, esbarrando aleatoriamente

com pessoas que não podiam ver.
Cuidado com eles, sussurramos. Mas, para nós, eles eram todos iguais.
Praticamos a palavra

praga — uma palavra divertida, e a alguns de nós
até apetecia apanha-la, assim como assim, porque não?
Infelizmente,

foi difícil controlar o nosso
instinto animal de sobrevivência
mesmo sabendo que estávamos condenados.

Vigiamos as ruas com um certo déjà vu
parecia que já tínhamos feito isto antes, noutra vida -
espiar

vizinhos, denunciar familiares
nas voltas e reviravoltas da história,
a miséria imposta como referência.

De certa forma, somos todos a mesma doença.
Para sobreviver aos humanos, precisamos de desistir
da humanidade — é o que nos diz o tirano interior.

São os pulmões que racham como gelo. É a respiração
que nos sobe pelas veias como vapor. Procuramos
uma doença onde há apenas nitidez, há apenas culpa.

III. O coronavírus no quarto

O vírus observa-os, de nariz
contra a janela, mas os amantes
não se apercebem, continuam a rolar como bonobos, a abanar

a cama. Nós ouvíamo-los pelas paredes,
o que significa que eles também nos conseguiam ouvir,
gemendo como animais,

esquecendo — perdoando — os nossos membros, os nossos
órgãos, todas as maneiras pelas quais as nossas peças rococó
se debatem, atingem o clímax, se estragam,

ônfalos de todos os mundos onde
existimos, no nosso vigor omnidirecional.
Do outro lado, o nosso outro vizinho

bate na parede. Merda,
pensamos, não podia ir
lá para fora levar com o vírus?

Claro, sabíamos que estávamos a ser
injustos. O vírus tinha chegado para ficar.
Nós sabíamos, ali o vírus

sozinho ao frio,
de olhos postos no êxtase,
o tempo e tudo o resto parado, a sua respiração

a embaciar a janela, como quem deixa
um recado, a boca enrolada em O,
gritando Ooh-la-la. E, Bravo!

IV. O coronavírus no Jardim Imperial

O vírus é um inimigo que luta sem regras
mas falta-lhe firmeza. Falta-lhe país.

Falamos assim no Jardim Imperial

no Escritório de Prevenção de Epidemias
e controle para lembrar as pessoas
quem está no controle — de quem não

as abandonou, quem pode levantar a névoa,
mover montanhas e rios.
O que sacrificaria pela sua casa,

que é o seu país? Quem falhar
será atirado para a pilha da vergonha. Sejamos
otimistas.

Vamos lembrar-nos por alguns segundos naquela cidade sitiada
na província de mil lagos;
ouvimos dizer que um homem saltou da ponte Simen,

mas verdade é o que dizemos. O poeta diz que
a verdade é o que é proclamado antes do julgamento,
Mas isso que importa? O bom doutor morreu apesar de acreditar. Nós não acreditamos,

sabemos como o sistema funciona, como números
são reportados, o que os apresentadores querem dizer quando dizem para acreditarmos no Arbítrio Final.

“Entende?” é uma pergunta retórica.
Você escolheria Povo em vez de povo,
país em vez de si próprio, partido em vez de família?

Derrubamos salas de mahjong, exigimos
paradeiros, pedimos aos outros que deem o exemplo,
que mantenham distância, durmam em camas separadas.

Seja patriótico. Em casa, nos nossos verdadeiros lares, aconchegamo-nos
mais perto do que nunca. Tememos que se — quando — isto acabar
eles nos vejam melhor do que nunca.

V. O coronavírus no ar

Máscaras. Usando-as
temos mais consideração
pelo outro.

Os nossos olhos encontram-se com mais frequência,
durante mais tempo, procuram provocação,
aferir interesse

até à conjuntivite.
Tentamos vários sons,
tossindo e fungando,

recordando as lições
que os nossos gatos e cães nos ensinaram:
orelhas para trás, cabeça inclinada. Somos educados

com quem não nos interessa,
ampliamos as expressões,
suavizamos as sobrancelhas

para dizer que entendemos o sentimento.
Mas, ocasionalmente, ao lado de um corpo
inclinamo-nos,

fazemos uma careta de desejo,
com agonia e desespero por não poder arrancar estas máscaras e rir
pobres nervos. O nosso olhar parou na sombra das nuvens,

nos azulejos antigos sobre telhados e asas de dragão
ondulando no azul pálido. Vimos os caminhos
e fundimo-nos com o mundo, com o ar, levando para os pulmões

as árvores, o beldroegas na calçada, as recompensas
por ser quem somos. Magia, dizemos
aos nossos botões, esquecendo o que é que temíamos.

VI. O coronavírus no coração

Paramos de dizer olá.
Estamos infetados com obstinação, infetamos
aqueles que amamos com dúvida,

aqueles que não gostamos com convicção;
com lembranças do passado,
que é uma aflição rigorosa,

aflitos como estamos com a mesma doença;
com mal-entendidos,
tudo evitável se não fôssemos simplesmente nós mesmos;

a verdade explodiu como um espirro
tencionávamos manter-nos por dentro. Suspiramos
na cama, tocamos o contorno do corpo ao nosso lado,

aliviado pelo assobio quente do chuveiro.
O vírus desapareceu, e naqueles primeiros dias
preenchemos o seu vácuo com energia e humor;

então, com o nosso sentido de justiça
tentamos infetar outras pessoas. No nosso purgatório
tínhamos aprendido o que significava

a “Condição humana” e agora
perguntamo-nos o que valia a pena comemorar.
Um triunfo para a humanidade, as notícias triunfaram

enquanto nos questionávamos se merecíamos tanto.
Afastamo-nos dos corpos, paramos
de segurar portas. Arrastamo-nos

em tapetes de escritório, servimos café sem o cheirar.
Olhamos ironicamente para aqueles ainda mascarados,
esquecendo todas as maneiras que temos de ser infeciosos.

Andamos pelas ruas como fantasmas tristes.
Com dois dedos, esfregamos o peito,
questionando o que é que nos falta.

Anthony Tao (Foto por Eric Favreliere)

Anthony Tao é um escritor e editor atualmente a residir em Pequim. A sua poesia tem sido publicada em diversas revistas literárias tais como The Cortland Review, Prairie Schooner, Borderlands, Frontier, Kartika Review, Cha, Poetry East West, entre outras. Em 2019 lançou o álbum de poesia e música “The Last Tribe on Earth”, em que diz poesia ao som da guitarra clássica de Liane Halton. É editor-gerente da empresa de media on-line SupChina, sediada em Nova Iorque.

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