“Confesso que tenho dificuldade em ver como é que a filosofia pode «inspirar» a pintura”

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
8 min readJul 8, 2018

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A obra Teologia da Carne, publicada pela editora Documenta/Sistema Solar, resulta de um diálogo fértil entre a filosofia e a pintura. Tanto Sousa Dias como António Gonçalves falam aqui dessa experiência e da forma como estabeleceram uma simbiose e de como ela se apresenta neste livro.

Nascido em 1956, no Porto, o professor e filósofo Sousa Dias é conhecido sobretudo pela sua obra sobre o pensamento de Deleuze, autor que traduziu e sobre o qual escreveu um livro introdutório, Marx, Zizek, mas deve ser igualmente referido pelas suas obras sobre estética, como O Riso de Mozart (2016) ou O que é Poesia (2014), em que aborda o cinema, a literatura, a música e a pintura, não esquecendo o seu livro de entrevistas Pré-Apocalypse Now, publicado em 2016.

António Gonçalves nasceu em Vila Nova de Famalicão em 1975. Licenciou-se em Artes Plásticas — Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto — e frequentou a Faculdade de Belas Artes de Cuenca-Espanha, ao abrigo do Projecto Erasmus 1998/1999. É actualmente doutorando em História de Arte, na Universidade de Les Illes Balears, Palma Maiorca. É pintor e Director Artístico da Galeria Municipal, Ala da Frente, Vila Nova de Famalicão, desde 2015, Director Artístico da Fundação Cupertino de Miranda Vila Nova de Famalicão, desde 2002 e foi professor Auxiliar na Escola Superior Artística do Porto, entre 2001 e 2014.

Começo por citar as palavras de Sousa Dias, logo no início desta obra: Escrever sobre esta pintura. Não. Não escrever «sobre». Fazer antes que seja ela, de certo modo, e tanto quanto possível, a escrever-se, a trans-escrever-se. Creio perceber o que aqui é dito e parece-me ser a via a tomar, mas como foi o acesso à obra de António Gonçalves? Passa pela empatia? Pela afinidade? Como nasceu o vosso diálogo?

SD — Somos amigos muito próximos, o António e eu. Não nos faltam empatia pessoal e «afinidades electivas». Mas a amizade não teve papel nenhum na génese do meu livro. Nem este partiu de um diálogo entre mim e o António, mas antes entre mim e a pintura dele. O António foi mesmo apanhado de surpresa pelo projecto do livro, e só teve acesso ao texto depois de escrito. A ideia era fazer conhecer uma obra plástica que me fascinou e me interpelou desde o meu primeiro contacto com ela, no atelier do António. Considero a pintura dele, apesar da sua escassa visibilidade pública, crítica e mediática, uma das criações maiores da arte portuguesa desta época. E acredito que o tempo me dará razão. Mas quis evitar «explicá-la», aplicar-lhe conceitos teóricos e estéticos preexistentes, forçar-lhe um sentido como expressão por imagens de um pensamento conceptual «abstracto», de um pensamento reflexivo procedendo por conceitos gerais. Tratava-se, pelo contrário, de tentar «escutar» esta pintura e o seu sentido alógico inerente, de explicitar-lhe o pensamento próprio e a singularidade desse pensamento. De me confrontar com o que nesta obra sempre me intrigou e excedeu, me desafiou a pensar, e a repensar com ela coisas como a possibilidade da pintura na época da sua pretensa morte, a condição contemporânea da arte, a relação entre tradição e contemporaneidade nas artes, etc. Daí as palavras iniciais do livro, as frases que tu citas.

AG- A amizade veio sem dúvida fazer parte da minha relação com o Sousa Dias, uma relação que nos tem levado a conversas em redor da filosofia e da pintura, da criação artística e literária. Sou um leitor da obra do Sousa Dias e muito aprecio a sua visão e analise estética e filosófica do processo criativo, do pensar a arte. Este livro foi mesmo uma surpresa para mim e uma intensa reflexão acerca da minha pintura. Faz-me olhar para o meu trabalho com outro olhar, com outra atenção. As visitas do Sousa Dias ao meu atelier são uma forma de conversa, sem que por vezes existam muitas palavras, mas uma comunicação de silêncios que bem aprecio. Penso a pintura e tenho neste livro uma excelente reflexão sobre o que é a pintura, a que pratico e apresento e aquela que se pode pensar num âmbito mais universal. É para mim um privilégio ter esta reflexão, este ensaio a dialogar com a minha pintura.

António Gonçalves, «Forma de Ver», Tríptico, Óleo sobre Madeira, 2016/2017 (Colecção do Autor)

Creio que o maior privilégio, para ambos (e também para mim) é esta reflexão dialógica, que se estabelece, não apenas entre vós, como com outros autores, como Rui Chafes, o qual aparece desde o início, sob o signo daquilo a que Sousa Dias chama «anacronismo». Reconheces-te nessa forma de «olhar», António? Ou achas que a ideia é mais do filósofo Sousa Dias? O anacronismo é uma forma de recusa da trepidação do mundo actual ou é uma atitude na vida? E que referências se encontram aí presentes?

A.G. — Eu compreendo que o Sousa Dias veja no meu trabalho esse anacronismo e revejo-me no grupo de autores cujos trabalhos se propõem em diferentes linhas de tempo. Considero que o Sousa Dias faz um uso do “recuo” para lhe permitir uma análise mais abrangente do fazer criativo. Pensa a acção criativa e os seus resultados tratando-os em linhas temporais mais abrangentes. Faz filosofia para pensar o fazer e o existir artístico. O anacronismo é no fundo um resultado da minha forma de praticar pintura, de pensá-la, de a propor e apresentar ao mundo actual. Não entendo o anacronismo como atitude de vida. As referências artísticas que me assistem neste sentido são obras e autores específicos através dos séculos, com os quais trabalho em proximidade e intemporalidade.

S.D. — Concordo com o António: o anacronismo, o «recuo», como ele diz, face à «actualidade», não é uma questão subjectiva, de atitude de vida, de estilo pessoal deste ou daquele artista, mas uma questão objectiva da arte, sobretudo hoje. Numa época que, como a nossa, proclama o fim da arte (de toda a ideia ou espírito da arte legada pela tradição) e, em particular, o fim da pintura, uma obstinação, como a do António, na pintura é objectivamente anacrónica. E mais ainda se essa pintura retoma formas antigas, da arte sacra medieval e renascentista, o retábulo, o políptico. De igual modo, Rui Chafes: o diálogo trans-histórico das suas esculturas com o espírito da arte gótica, o seu anacronismo assumido. Essa é a única arte que me interessa: aquela que, nas suas próprias rupturas criativas, não só não recusa como prolonga a tradição, a história, a memória, e que responde, aceita responder, perante essa memória, perante o «imenso povo dos mortos» de que fala Genet acerca de Giacometti. É isso que me fascina na pintura do António como, antes dele, e por exemplo, na de Álvaro Lapa: uma novidade radical em «conversa» com a tradição.

«Contemplação particular», Políptico aberto, Óleo sobre Madeira, 2014/2016, Colecção do Autor

A uma certa altura, nomeadamente no capítulo 3, “A sagração de Eros”, Sousa Dias refere-se à ideia de culto, onde mais concretamente afirma: Tudo nesta obra tem relação com um culto. E o próprio título remete-nos imediatamente para a ideia da sacralização da carne. Quase sempre a sacralização aparece ligada ao corpo, neste caso a carne. Em que é que consiste esta ideia? Que culto é este, numa época desprovida de sagrado e de religiosidade?

S.D. — A dimensão do sagrado ou, melhor, de sagração é evidente nesta pintura, e desde logo, como disse, no formato, políptico ou retabular, de muitas das composições. Trata-se de uma sagração estética, de uma sagração pela arte do desejo erótico e, através dele, da vida, não da vida como coisa pessoal ou atributo de viventes mas da vida «ela mesma», da vida «querendo-se a si mesma», como dizia Nietzsche, querer esse do qual Eros, a pulsão sexual, animal ou vegetal, é a primeira expressão. É por isso que não há corpos nesta pintura mas apenas carne, figuras carnais impessoais, figurações não de sujeitos desejantes mas do próprio desejo, de maquinações desejantes pré-subjectivas que têm na carne a matéria da sua consumação.

A.G. — A ideia de primeira expressão a que se refere o Sousa Dias é o âmago do meu querer fazer existir o mistério, esse mesmo que ainda hoje me faz acreditar no ver pintura, no querer estar perante a pintura enquanto corpo. Para mim a força de Eros ou da pulsão sexual ainda justifica tanto o sagrado como o pagão, tal como justifica o puro gesto de querermos ser e existir.

«Forma de querer», Óleo sobre Tela, 2014, Colecção do Autor.

Um pintor é «visto» por um filósofo. Como é que se tocam aqui a pintura e a filosofia? Há algum tipo de resistência ou é uma relação fácil entre ambas?

A.G. Uma visão necessária a do filósofo, possibilitadora de amplitude e reflexão. A pintura e filosofia coabitam neste livro, dialogam, reafirmam questões e apontam possibilidades. A pintura faz um uso da luz como a filosofia procura a clarividência e neste sentido indagam ambas a origem. Para mim é uma relação estreita e mesmo uma forma complementar de auxiliar o pensamento.

S.D. Compreendo o que diz o António, que, aliás, reivindica no seu trabalho a inspiração de pensadores como Bataille e Onfray, a par da do Flaubert das Tentações. Mas confesso que tenho dificuldade em ver como é que a filosofia e os seus conceitos podem «inspirar» a pintura e as suas percepções estéticas. A filosofia pode quando muito «dar» à pintura os conceitos que são já, em estado prático, os dela, explicitar teoricamente o pensamento nela perceptualmente presente, e foi isso, e apenas isso, o que pretendi fazer com o meu livro, é assim que a filosofia me parece ter uma tarefa possível, poder interceder, pensar-com e não pensar-sobre. Em contrapartida a pintura, e as artes em geral, podem dar à filosofia, eventualmente, uma «compreensão» sensível dos seus conceitos, um avesso perceptual das suas abstracções: por exemplo Ozu e Kant, «Kantozu» como diz Carlos Couto Sequeira Costa, Cézanne e Merleau-Ponty, Francis Bacon e Deleuze, toda uma entrexpressividade que encontrei também, para o meu próprio pensamento, na pintura do António.

Leia aqui a recensão sobre o livro Teologia da Carne.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.