Com a luz nas mãos, do corpo pulsante à claridade solar

Gisela Gracias Ramos Rosa
Revista Caliban issn_0000311
9 min readDec 13, 2018

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Notas de leitura ao livro Uma Vara de Medir o Sol, de Graça Pires

Por Gisela Gracias Ramos Rosa

Editora Coisas de Ler, Colecção de Poesia Clepsydra, nº 11, 2018

De pé, demoradamente invocando

o grito do destino, somos a sombra

de uma vara, presa à inclinação do sol,

que define a vertigem que nos derruba

e que nos ergue.

Graça Pires, em Uma Vara de Medir o Sol

O Sol, estrela central do sistema solar é, também, âmago da Poesia de Graça Pires.

Quando a autora me convidou para escrever umas palavras sobre o seu livro Uma Vara de Medir o Sol, senti um feliz desafio, o privilégio de traçar umas linhas sobre a intensa claridade que a autora nos oferece. Por outro lado o título liga-se de imediato ao nome da Colecção de poesia em que agora se integra — Clepsydra1 — sugerindo um encontro feliz com o projecto de poesia em que tenho vindo a colaborar com a editora Coisas de Ler.

Esta é a vigésima publicação da autora e o seu décimo nono livro, embora sendo uma reedição, trata-se da primeira vez que é editado em Portugal (a primeira edição brasileira de 2012, teve a chancela da editora Intermeios de São Paulo). Nascida em 1946 e Licenciada em História, Graça Pires é detentora de cerca de nove prémios literários reconhecidos, convivendo com a sua já extensa publicação e o seu talento literário, sem exuberâncias. Revela-se na poesia com a obra Poemas, em 1990 (editora Vega), publicada após ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da APE, em 1988. Em 1993, recebe o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, com a obra Labirintos, que virá a ser publicada em 1997, numa edição da Câmara Municipal de Murça que lhe atribuiu o prémio Fernão Magalhães Gonçalves. No mesmo ano de 1993, recebe o Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres, para Outono: Lugar Frágil, livro publicado pela Junta de Freguesia de Fânzeres, no mesmo ano. A premiação das suas obras de poesia, repete-se com Ortografia do Olhar (1995), Conjugar Afectos (1996), Uma certa forma de errância (2003), Quando as Estevas entraram no Poema (2004), O silêncio: lugar habitado (2008). Ainda que várias vezes premiada, denotando o gosto unânime dos seus leitores, é “(…)surpreendente e contraditório o facto de ser simultaneamente uma figura discreta da poesia portuguesa e do panorama crítico literário, sempre tão “urgente” nas suas descobertas e revelações literárias.” (Maria João Cantinho, em apresentação do livro Poemas Escolhidos 1990–2011).

Se a medição da inclinação do Sol (2), quer pela vara (gnômon 3) ou por um relógio de água (Clepsydra) na ausência daquele, sugeria um modo de orientação cronológica daquilo que se convencionou chamar “tempo”, no presente livro a autora Graça Pires traz-nos a evocação de um instrumento antigo com recurso a fontes poéticas, à forma tão própria de abraçar as preocupações inerentes ao humano e ao seu meio com a transversal corrente da palavra poética. Natureza e humano interagindo com aspectos psicológicos, sociais e culturais marcadamente presentes nas imagens que Graça Pires nos oferece. Vejamos o poema que se segue:

Há lugares que têm a feição

das coisas instáveis e perecíveis.

Lugares sobrepovoados

onde os gatos vagueiam em silêncio

como se ouvissem os passos dos mortos.

Lugares com ruas sem saída e casas precárias.

Lugares que são faca e cinza,

lume e vento, lixo e medo.

Lugares onde empalidecem os dias

e as pessoas e os deuses, cada vez mais falíveis.

(Graça Pires, em Uma Vara de medir o sol)

Neste poema a autora mostra-nos a condição de alguns “lugares sobrepovoados”, traçando o mundo degradado e perecível, em que vivemos, com metáforas reveladoras de uma sociedade onde convivem guetos, miséria e morte. Atente-se às palavras “medos”, “lixo”, “cinza” e “silêncio” e aos dois últimos versos “Lugares onde empalidecem os dias/ e as pessoas e os deuses, cada vez mais falíveis.”(GP). Os poetas têm uma função social primordial e necessária, como já referia Georges Bataille, quando a humanidade vê negada a possibilidade de existir e transpôr os limites do possível, limitada que está a sua voz perante políticas sistemáticas de silenciamento, decorrentes da agressividade dos mercados ou por questões de mentalidade economicista e desumana.

Este é um livro que é também lugar construído como um processo de energias conscientes e “inconscientes”, numa dinâmica criativa e reflexiva em que se foram vincando problemáticas ambientais importantes que têm origem na cisão que o “progresso” vem instalando entre a natureza e o humano. Este é um dos temas flagelo do nosso tempo, a que os poetas não se deveriam furtar, e a que Graça Pires faz jus trazendo a claridade do seu corpo poético a este livro com que nos presenteia e chama a atenção.

A propósito da luz dos lugares, diz-nos António Salvado num seu poema com o título lugar: “Onde a flor seja gravidez de cravos/e se descubram gritos das montanhas/ a traçar rios, mares, continentes.//Onde o sol não se esconda porque não/ e a claridade seja eternidade/ e a eternidade seja fé e pão.(…)” (A.S, em La hora sagrada, p. 68). Assim é a poesia de Graça Pires “fé” e “pão”, hino silencioso do corpo ancorado à palavra. Do corpo onde nasce a poesia de Graça Pires, um jogo de margens necessárias articula meticulosamente emoções e raízes num quotidiano que oscila entre o lírico, o social e o metafísico.

Não foi em vão que Graça Pires seleccionou os versos de Albano Martins para abrir o seu livro. A “Casa” esse lugar herdado e por nós habitado é também passado, presente e futuro, tempo-lugar vincado pela acção humana e por todos os condicionalismos envolventes.

Conta-nos a autora:

Antes do homem havia a terra

Geografia mágica, sagrada

Que, na luz e na treva, explodiu

De espanto e guardou, milenarmente,

Os mistérios da vida e da morte.

Depois da terra veio o homem.

E o homem tornou-se um morador incauto

E perdeu o paraíso onde agora os deuses,

Quando passam, desviam o olhar.

(GP, em Uma Vara de Medir o Sol)

Aqui Graça Pires mostra a ruptura entre a natureza e o humano e o consequente desequilíbrio, “E o homem tornou-se um morador incauto//E perdeu o paraíso onde agora os deuses,/ Quando passam, desviam o olhar.”

Se o corpo é um campo de memórias vive-se com ele a percepção do desamparo e do abismo, dos medos com que somos confrontados no planeta azul. E se a criação mostra aos poetas um lugar liminar, entre o ser e o não-ser, dando-lhe recursos de permanente mutação, face ao mundo exterior, os receios persistem em angústias sem horizonte onde se estreitam as janelas de interacção reparadora.

Este livro de uma imensa claridade com que a poeta já nos habituou em todas as suas obras, ressurge entre metáforas metalinguísticas imprevistas e uma linguagem simples, sinal de depurada maturação, de um exercício de escrita em busca do “Absoluto” que a poesia sugere representar na “máxima condensação da linguagem humana” (Eduardo Lourenço, em Tempo e Poesia).

Corpo-espaço, desassossego e espanto, testemunho paradoxal de um mundo moribundo que se faz voz precisa na poeta. Nos poemas de Graça Pires, as palavras são já acção transformadora, lente lúcida e transparente da poeta descobrindo as manhãs, o futuro.

A palavra mede aqui a inclinação do sol na terra e no humano revelando a extensão da sombra mas, essencialmente, o seu contraste. Reflexo de si e dos outros a autora cria a partir de uma geografia de sentidos de um quotidiano assimilado e vertido na água do poema.

Conheço a obra da poeta e a autora e posso referir que nela a ambivalência onírica e melancólica é seciada por uma semente “amarga” que velozmente se ilumina com a palavra que incide na página, com o sol que faz eclodir a sua poeticidade. “Só a palavra poética é libertação do mundo.”(Eduardo Lourenço, idem).

Apesar da solidão e do silêncio sempre presentes na escrita da autora, esta nunca está só, no sentido literal da palavra. Acompanham-na todas as nuances do mundo vivido, por viver e, ainda, o dos leitores presentes neste círculo próximo da palavra poética que ao leitor é oferecido, uma espécie de “encarnação sensível do Infinito no finito” uma das descrições do acto poético como nos refere Eduardo Lourenço.

Graça Pires recorre a instrumentos antigos, move o seu arado lavrando a terra poética com a transparência e a intensidade de autores como Daniel Faria, Herberto Helder ou Rilke.

Se por um lado a riqueza metafórica da poesia da autora a aproxima de Herberto Helder naquilo que Maria Cantinho afirma ser “uma componente alucinatória fortíssima” e, ainda, se na poesia de Herberto Helder encontramos uma linha que se estende do mítico ao utópico, em Graça Pires o fluxo poético estende-se do concreto (quotidiano) ao utópico assente nas mãos do humano e por isso possível de transformar. Vejamos alguns versos dos dois autores:

De Herberto Helder,

“Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol. (…)

(Herberto Helder, Sobre um poema).

Da leitura da obra de Graça Pires reconheço na dinâmica pulsante da sua poesia, um fluxo veloz, “um grito do destino” “que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue” e esse movimento ou força em que progride o poema aproxima-a mais de Daniel Faria com os seus instrumentos de lavoura e a sua arte metafórica tão próxima do sol, como um “candeeiro branco” “que se ergue entre as mãos” (Daniel Faria, em Poesia), onde julgo encontrar algumas afinidades entre escritas e vocações. Se não consegues mudar o teu mundo, imagina essa possibilidade com a tua solidão:

De Daniel Faria,

Escrevo do lado mais invisível das imagens

Na parede de dentro da escrita e penso

Erguer à altura da visão o candeeiro

Branco da palavra com as mãos

Como paveia atrás do segador

Vejo os pés descalços dos que morrem sem nunca terem provado o pão

Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador

Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:

Imaginai

(DF, Poesia)

Em Graça Pires a poesia é branca e move-se a uma velocidade infinita que encontro na poesia de Daniel Faria: “Correi. Como o segador seguindo o segador” (DF), “nessa vertigem e nessa claridade repousa a nossa existência sem repouso” refere Eduardo Lourenço (ibidem). No entanto, a escrita de Graça Pires é peculiar no que se liga à tentativa de modelação do quotidiano através da poesia que nela se faz voz terceira, “Aguardamos uma luz de seiva/ que reacenda a treva que nos cega” (GP, em Uma Vara de medir o sol)

Diz a autora no poema com que iniciei este texto,

De pé, demoradamente invocando/o grito do destino, somos a sombra /de uma vara, presa à inclinação do sol,/ que define a vertigem que nos derruba/ e que nos ergue.

(GP, em Uma Vara de medir o sol)

Diria Rilke sobre o tema de Uma Vara de Medir o Sol:

(…) Mal notam

Como arde tudo o que as suas mãos tocam,

De modo que quando se à sua última orla chegar

Não a podem segurar sem se queimar.(…)

(em O Livro de Horas, p. 273)

Em Uma Vara de Medir o Sol, a poesia é material suspenso do desejo de uma nova transformação perante a destruição do mundo. Assistimos neste livro a uma chamada de atenção ao leitor para as grandes ameaças do planeta e à aspiração de perpetuar o devir, a luz do sol em manhãs vindouras, pois somos responsáveis quando “O chão arde em nossos passos, vítimas/e culpados do desvario dos caminhos.” (Graça Pires, em Uma Vara de Medir o Sol).

E diz, ainda, a autora,

“Por quem tocam os sinos a rebate

quando estremecemos voltados para a terra?”

(GP)

Graça Pires inscreve a sua voz e o seu silêncio numa escrita-apelo transversal à Terra, à Humanidade, a todos os tempos, à Vida.

Gisela M. Gracias Ramos Rosa, (Poeta, (1964, Maputo), tem formação em Relações Internacionais, é Mestre em Relações Interculturais e pós-graduada em Migrações Etnicidade e Racismo. Profissionalmente foi perita forense durante de trés décadas. É poeta e tem os seguintes livros publicados: Vasos Comunicantes, Diálogo poético com António Ramos Rosa (2006, ed. Labirinto), reeditado em 2017 (Poética edições), em formato bilingue português/ /espanhol; tradução das manhãs (2013, Lua de Marfim) vencedor do Prémio Glória de Sant´Anna 2014; as palavras mais simples, (2014 Poética edições); O livro das mãos (2017, Coisas de Ler) vencedor do Prémio Glória de Sant´Anna 2018. A pedra e o corpo (2018, Poética edições), é o livro mais recente.

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Autores visitados: António Salvado, Daniel Faria, Eduardo Lourenço, Georges Bataille, Graça Pires, Herberto Helder, Maria João Cantinho, Rainer Maria Rilke, Ronaldo Cagiano, Victor Oliveira Mateus.

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1 A clepsydra ou relógio de água foi um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo. Trata-se de um dispositivo movido a água, que funciona por gravidade, no mesmo princípio da ampulheta (de areia).

2 O relógio de sol é o mais antigo instrumento de medição do tempo, foi inventado há pelo menos 3.500 anos. Nele, as horas são indicadas pela sombra que o gnômon ( objeto que, pela direção ou comprimento de sua sombra, indica a hora do dia numa superfície horizontal.) faz na superfície do relógio.

3 O Gnômon é a parte do relógio solar que possibilita a projeção da sombra.

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