Charles Baudelaire: o esgrimista da modernidade

Maria João Cantinho
Revista Caliban issn_0000311
7 min readSep 6, 2017

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Charles Baudelaire (1821–1867), por Etenne Carjat, em 1863.

De que serve falar de progresso a um mundo que se afunda numa rigidez de morte? A experiência de um mundo que estava a entrar nesse estado de rigidez encontrou-a Baudelaire fixada por Poe com uma força incomparável. Isto transformou Poe numa referência insubstituível para ele; aquele descrevia o mundo no qual a escrita e a vida de Baudelaire encontravam a sua razão de ser. Veja-se também a cabeça de Medusa em Nietzsche.

Walter Benjamin, A Modernidade, ed. Assírio e Alvim, Lisboa, 2006, p. 179.

Comemoram-se os 150 anos da morte daquele que foi o maior poeta da modernidade ou que, pelo menos, a inaugurou, em todas as circunstâncias paradoxais que lhe serviram de berço. Se foi Rimbaud que disse “Il faut être absolumment moderne”, numa proposta lançada à sua mãe, a propósito da sua obra Une Saison en enfer, ser moderno corresponde, no entanto, ao gesto poético de Baudelaire, esse génio maldito que ousou desalinhar o sossego da poesia lírica, da estética e da crítica do seu século. Uma decisão que se ancora, sobretudo, no seu primeiro estudo das relações entre a arte e a cultura moderna, de 1863. Fala-se aqui de um ensaio que foi publicado em três números do diário Le Figaro, sob o título elucidativo O Pintor da Vida Moderna. É aí que o termo “modernité” é usado pela primeira vez, numa intensa ligação com a experiência da vida urbana. Nesse texto incontornável, Baudelaire define um conjunto de reflexões que norteiam toda a sua experiência, enquanto crítico e enquanto poeta. E a modernidade, tema que se deve ter afigurado a Baudelaire mais como uma intuição preciosa e emergente do que como certeza, ganha corpo e formas peculiares. Para ele, a modernidade é uma experiência estética e indissociável das grandes metrópoles, pulsa na sua vida frenética, como também o havia compreendido Edgar Allan Poe, na sua obra O Homem das Multidões.

O “homem das multidões”, o artista ou o poeta, o verdadeiro criador, é um tipo muito próximo do dandy ou do ocioso flâneur, embora não possa ser confundido com eles. O poeta é o novo porta-voz, se assim pudermos chamar-lhe, da experiência citadina, arrastada pela vertigem do efémero e do novo, mas também consciente da morte das formas anteriores da experiência. Neste sentido, o poeta moderno — como no caso de Baudelaire — não lamenta a decadência das formas antigas, a morte da aura e da familiaridade, mas emerge como o novo herói, que descobre uma beleza emergente (a beleza do efémero e do novo).

Passage Choiseul em Paris, em 1829

A experiência poética de Baudelaire transforma, pela primeira vez, Paris em objecto de poesia lírica. Porém, esta Paris de Baudelaire já não é (só) a cidade onde se exalta uma burguesia abastada e a sua experiência, mas uma cidade que é atravessada pelas suas figuras decadentes: a prostituta, o jogador, o trapeiro, o mendigo, entre outras figuras que exprimem a degradação moral, encarnando a figura do mal, do inferno da experiência citadina e do tedium vitae, le mal du siècle.

Expressão máxima e paradoxal dessa decadência é o estado de “spleen”, o véu que protege o poeta do choque da experiência e o faz sobreviver à dessacralização da vida citadina e do ideal (romântico). E é precisamente neste campo que a tutela de Walter Benjamin ilumina a obra de Charles Baudelaire, que compreendeu admiravelmente as formas de que se revestiu a poesia alegórica de Baudelaire e do seu pensamento “heróico”. Heróico num sentido nietzschiano, de recusa da ilusão, melhor dizendo, de recusa das ilusões românticas, de aceitação, também, daquilo que é a condição do humano, l’ennui e a perda de Deus. É nessa visão catastrófica “em permanência” que o spleen de Baudelaire se ergue como barreira contra o pessimismo. O termo de heroísmo aplicado a Baudelaire não diz senão respeito a uma conquista ou uma “armadura”, como o afirma Benjamin[1].

Foi Walter Benjamin quem compreendeu, no Livro das Passagens, as derradeiras apresentações desse mundo em queda, em catástrofe, em que a experiência nos aparece dessacralizada, e se tem acesso a uma visão desencantada, em que se percebe a ruptura da experiência autêntica[2], das correspondências originárias e da aura, e a emergência da experiência do choque. Não é só a vida que é atingida pela dessacralização, pela perda das relações familiares, pelo sentimento de pertença e de correspondência do homem relativamente a tudo (v. poema “Correspondances”), mas também da própria arte, “mortalmente atingida” pela era da reprodução técnica, que destrói a unicidade e a aura do objecto estético e dá início à era da cultura de massas.

A modernidade não diz apenas respeito a uma condição temporal, mas concentra em si a mais brutal das rupturas na própria visão sobre a arte. Não é por acaso que a crítica de Baudelaire à fotografia (os “adoradores de Daguerre”, como lhes chama, que não sabem senão reproduzir a realidade e mimetizá-la) e ao seu aparecimento se fazem de forma tão violenta, em O Pintor da Vida Moderna, especificamente no texto «Salon de 1859».

A ideia da repetição e da usura mecânica são-lhe insuportáveis, incompatíveis com a Arte e com a sua concepção como Ideal. E essas fissuras, que Baudelaire aceita como inevitáveis na experiência, são inaceitáveis para ele, pois defende, ainda e paradoxalmente essa concepção da Arte, mesmo se pressente a despedida da sua época. Também a sua obra poética vive numa tensão permanente entre as formas canónicas da poesia (utilizando o verso alexandrino e o modelo clássico da tradição poética nas suas estrofes) e uma nova linguagem que emerge da desconstrução da experiência e da sua perda de sentido, no mundo moderno e fragmentado, da experiência do choque.

Politicamente, Baudelaire perfilhou, desde muito jovem e contra o seu padrasto, ideias de um socialismo utópico e libertário, tendo lutado ao lado dos insurrectos, nas barricadas de Paris de 1848. Um socialismo revolucionário que cresceu contra o Antigo Regime e encontrou a sua máxima expressão nas situações conturbadas que se viviam em Paris. Daí a sua paixão revolucionária por Blanquis, que Benjamin frisa amiúde, comparando o abismo de Baudelaire com o de Blanquis:

Em Blanquis, o espaço cósmico tornou-se abismo. O abismo de Baudelaire é sem estrelas. Ele não deve ser definido como espaço cósmico. Mas é ainda menos o abismo exótico da teologia. É um abismo secularizado: o abismo do saber e das significações […][3].

Este é o universo baudelaireano por excelência, esvaziado de ilusões, pois heróico é aquele que procura despertar das fantasmagorias de uma sociedade que vive imersa num sonho colectivo e prisioneira do fetiche da mercadoria. O spleen de Baudelaire é o véu poético que protege e ameniza o choque do poeta com esse “abismo”, com o desencantamento social e político que contamina tudo, até atingir a camada existencial mais profunda, uma vez suspensas as crenças num mundo organizado e estável, orgulhoso das suas familiaridades, isto é, ainda crente na possibilidade da narração enquanto modo de transmissão da tradição.

Baudelaire vai muito longe na compreensão desta “modernidade” que irrompe sob todas as formas, violentamente, pondo à vista as feridas de uma época em que todos os valores se encontram decadentes e arruinados. Nietszche tinha-o compreendido de forma genial e Baudelaire segue-lhe as pisadas. A sua visão poética constitui-se como um olhar crepuscular sobre as ruínas da sua época que quer “salvar”, ao mesmo tempo, através de uma poética que consubstancia em si um olhar alegórico. Eis-nos chegados ao mais obscuro dos desígnios de Baudelaire.

A raiva da poesia de Baudelaire, essa raiva que toca e petrifica tudo aquilo em que toca, não é senão um gesto alegórico e salvador, que pretende destruir o que já se apresenta morto e arruinado, para o salvar pela escrita. O poema é o resultado desse gesto. É um olhar de despedida, irreversível, mas que não lamenta, petrifica apenas, para que a eternidade o salve numa outra ordem que é a das significações, do saber: em suma, da escrita. Esse é por excelência o olhar da Medusa, aquele que Baudelaire lançou sobre a sua época e a modernidade. Implacável e sem ilusões, mas ainda assim de uma beleza excruciante, pois nela foi capaz de ver nascer uma nova luz, uma beleza que os olhos da sua época ainda não eram capazes de vislumbrar.

“ Je suis le roi d’un pays pluvieux,

riche, mais impuissant, jeune et pourtant très vieux

Qui, de ses précepteurs méprisant les courbettes,

S’ennuie avec des chiens comme avec d’autres bêtes

Rien ne peut l’egayer, ni gibier, ni faucon,

Ni son peuple mourant en face du balcon.

Du bouffon favori la grotesque ballade

Ne distrait plus le front de ce cruel malade;

Son lit fleurdelisé se transforme en tombeau,

Et les dames d’atour, pour qui tout prince est beau,

Ne savent plus trouver d’impudique toilette

Pour tirer un souris de ce jeune squelette.

Le savant qui lui fait de l’or n’a jamais pu

De son être extirper l’élement corrompu(…)”

Baudelaire, Les Fleurs du Mal, LXXVII — spleen.

[1] A Modernidade, trad. de João Barrento, p. 156.

[2] Mais uma vez remeto o leitor para a análise benjaminiana da noção de experiência, aqui tão intimamente articulada com a análise de Baudelaire.

[3] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, Passagen-Werk, tomo V, 1, Suhrkamp Verlag, Frankfurt, 1974., p. 348.

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Autora, ensaísta e poeta. Tem quatro livros de ficção publicados, 5 livros de poesia e 2ensaios. Doutorada em Filosofia.