Autonomia e liberdade na arte

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
9 min readOct 6, 2018

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João Paulo Sousa

(a propósito do diário de Cesare Pavese)

Não se recordam os dias, recordam-se os instantes.

Cesare Pavese

Se fosse necessário invocar uma razão para se escrever hoje sobre Cesare Pavese, poder-se-iam referir, levando em conta o tão contemporâneo gosto pelas celebrações, os cento e dez anos do nascimento do autor italiano; não creio, porém, que aqueles que verdadeiramente se interessam pela literatura precisem desses subterfúgios para revisitarem uma voz que, em alguns momentos de feroz lucidez, foi das mais estimulantes que o século XX europeu nos legou. Não me refiro à sua poesia, nem à prosa ficcional, ainda que o mérito de ambas já bastasse para o colocar em posição de destaque nas letras da nossa época; falo antes de Il Mestiere di Vivere, esse livro raro, e póstumo, cuja verdadeira dimensão só pôde ser devidamente avaliada — e com que incómodos — quatro décadas após a primeira publicação[1].

Tendo sido dado a conhecer em 1952, dois anos depois do suicídio do autor, o diário de Pavese ajudou a desmontar a imagem do escritor comprometido com uma ideologia, decidido a ter uma intervenção política como linha de orientação da actividade artística; pelo contrário, o que este livro nos mostra é a profunda angústia de um homem que reflectiu desassombradamente sobre a existência, e que o fez sem os limites que poderiam ter-lhe sido impostos pela ideia de publicação em vida: «Quando um homem está no estado em que me encontro, só lhe resta fazer o exame de consciência» (p. 44). Este esforço de impiedosa auto-análise nunca se mostrou preocupado em deter-se antes de proferir afirmações inconvenientes, mas esse é o preço a pagar por quem se quer conhecer, e à sua arte, com o rigor e a verdade que não admitem concessões. Por isso, a primeira edição do diário foi expurgada de frases obscenas e exibições de misoginia, no intuito de que fosse salvaguardada a imagem do intelectual comprometido com o anti-fascismo e, posteriormente, com o Partido Comunista. Essa, porém, era já uma imagem carregada de ranhuras, talvez mesmo de brechas, por onde facilmente seria possível, a um atento observador, perceber os sinais que destoavam do conjunto, antes sugerindo, acima da envolvência social marcante nas suas narrativas, a importância de um clima existencial que dizia respeito ao ser humano de um modo quase independente da polis. Tratava-se, à época, de uma atitude corajosa — capaz, de resto, de suscitar ainda hoje muitos equívocos –, que se apresentava mesmo, num certo campo artístico da década de quarenta, como uma heresia a merecer, pelo menos, a excomunhão intelectual.

Ora, para Pavese, importava sobretudo o princípio, o começo, uma vez que neste se consubstanciava a esperança, a crença em algo de positivo, embora tão vago que melhor seria até não o confirmar. Numa das primeiras entradas do diário, podemos ler: «A única alegria neste mundo é a de começar. É belo viver, porque viver é começar, sempre, a cada instante. Quando esta sensação desaparece — prisão, doença, hábito, estupidez — deseja-se morrer» (p. 67). Para um verdadeiro revolucionário, este desejo não deveria manifestar-se; nessa óptica, ele será sobretudo um sinal de fraqueza, uma denúncia da incapacidade para substituir o egoísmo burguês (ou pequeno-burguês, como tanto se repetiu ad nauseam) pela força colectiva. Pavese, no entanto, era um artista, e buscava o prazer da própria actividade, para lá do que ela pudesse representar e do que chegasse a produzir. Com efeito, nada se mostra menos prospectivo — e, consequentemente, menos revolucionário, menos crente nos amanhãs que cantam — do que algumas das suas frases: «Em nenhuma actividade é bom sinal se, de início, existe o desejo de vencer — emulação, violência, ambição, etc. Deve começar-se por amar a técnica de cada actividade por si própria, como se ama a vida pelo simples prazer de viver» (p. 115).

A arte é aqui apresentada como uma actividade tão nobre que o seu praticante deve resguardá-la do mundo profano. É, sem dúvida, perceptível um eco distante da sacralização artística, ao ponto de o escritor (é a literatura a arte que mais interessa a Pavese) precisar de se sacrificar na prática de outra actividade, no intuito de se defender das contaminações com que a sociedade procura enfraquecê-lo. Essa, porém, é também a única garantia da sua liberdade: «Porque é que o escritor não deve viver do seu trabalho de escritor? Porque então teria de fornecer uma determinada mercadoria. Deixa de ser livre perante si próprio. A todo o momento o escritor deve poder dizer: não, não escrevo isto. Isto é, ter outro ofício» (p. 349). Esta recusa descompromete o artista em absoluto quando confrontado com qualquer ditame que ultrapasse a sua vontade estética. Ao responder apenas perante a própria obra, recusa também esforçar-se por estabelecer laços de empatia entre si e os leitores; caberá apenas a estes defini-los, no caso de o pretenderem. Aliás, se assim não procedesse, o autor estaria a negar a tão propalada liberdade, e apenas teria escapado das garras de um dominador para se entregar nas de outro, pouco importando a comparação que se pudesse estabelecer entre a ferocidade do primeiro e a crueldade do segundo. É nas páginas finais do diário que encontramos reflexões de Pavese apontando nesse sentido, em momentos — cada vez mais frequentes — dirigidos a um falso interlocutor, a um tu que é, manifestamente, ele mesmo, num gesto que, como evidenciou Margarida Periquito na introdução redigida para a edição da Relógio d’Água, salienta sobretudo a solidão crescente do autor, o seu solipsismo agudo, quase a impossibilidade de prosseguir. A convicção, porém, da importância decisiva da vontade artística na construção da obra, ao ponto de ser ela a determinar a ordem ou a estrutura do que vai ser construído, era já antiga. No final de 1937 (o diário tem como limites os anos de 1935 e 1950), Pavese escreveu: «Há isto de verdadeiro na “arte pela arte”: sentamo-nos à mesa e saboreamos o puro arbítrio, um arbítrio para o qual a necessidade de leis internas é um sol, porque faz nascer, apenas de nós, uma ordem e uma escolha, isentas de qualquer brutalidade externa, nascendo palpitantes da nossa própria consciência» (p. 80). Ora, esta consciência interna é antes uma inconsciência, uma ultrapassagem do próprio criador, apanhado desprevenido diante da realização, e surpreendido com o resultado: «Por inferior que a obra seja ao sonho, quem é que não a contempla estupefacto e passivo, e não encontra nela coisas ignoradas?» (p. 80)

A irresponsabilidade do artista perante a obra é um tópico antiquíssimo, ainda hoje capaz de suscitar alguma controvérsia (a nossa época, porém, já não parece muito interessada nestas questões, e o seu debate, quando travado com um mínimo de entusiasmo, chega a assemelhar-se a um anacronismo, a um desses gestos praticados por quem já não se identifica com o mundo em que ainda vive e insiste em repetir os comportamentos a que outrora se habituou). Na verdade, porém, os termos em que tantas vezes tem sido colocado terão alguma responsabilidade na criação ou na manutenção de uns certos equívocos; com efeito, apesar de, ao início, uma parte da obra escapar ao propósito do autor, este recupera um pouco da sua anterior posição de força, na medida em que se serve do sentido que a obra vai construindo para lhe conferir uma razão, uma lógica, em suma, para escapar às aparências aleatórias do mundo envolvente. Quase a findar o ano de 1943, perguntava-se assim Pavese: «Como é que, sem o saberes, dirigiste tudo para um centro? Lógica interna, providência, instinto vital?» (p. 262) E, no ano seguinte, ensaiava uma resposta: «A obra que conseguimos realizar é sempre outra coisa. Avançamos de outra coisa para outra coisa, e o eu profundo fica sempre intacto; se parece esgotado, é apenas a fadiga que o sacode e o turva como a água que se agita, mas depois clareia e torna a surgir, ambíguo, o fundo igual. Não há meio para o trazer à superfície; esta é sempre apenas um jogo vão de reflexos de outras coisas» (p. 277).

Em definitivo, o que Pavese apresentava, pois, como a grande justificação da arte era a subjectividade, a afirmação de um sujeito que procura exprimir-se e conhecer-se através de um processo simultaneamente íntimo e estético, de um processo que passa obrigatoriamente pela libertação das regras sociais. Nada de repetir o que os outros já repetem: este parece ser um princípio orientador da busca incessante que Il Mestiere di Vivere representa. Por isso, não cabe aqui qualquer lógica reprodutiva, mesmo a um nível aparentemente natural ou instintivo: «“Encontrou uma finalidade nos filhos.” Para que estes encontrem, por sua vez, uma finalidade nos filhos? Mas para que serve esta aldrabice generalizada?» (p. 114) O sentido, então, encontra-se no próprio sujeito, mesmo que ele pareça sustentá-lo na mais diversificada série de razões, todas de carácter incontestavelmente exterior e objectivo; quanto mais intensa, contudo, for essa argumentação, mais deveremos desconfiar — parece dizer-nos Pavese — da convicção de quem assim fala. Uma entrada de 1948 é categórica a esse respeito: «Eu próprio e, conforme creio, muitos outros procuramos não o que é verdadeiro em absoluto, mas o que somos. Nestes pensamentos, tendes com astuciosa indolência a deixar aflorar o teu verdadeiro ser, os teus gostos fundamentais, as tuas realidades místicas. Não saberás que fazer de uma realidade que não possuísse um laço radical com a tua essência, com o teu subconsciente, etc» (pp. 335–336).

A subjectividade assim afirmada deve expressar-se da mesma maneira. De um modo coerente, Pavese considerava então a necessidade de construir narrativas segundo o modelo que Gérard Genette designou, anos mais tarde, como autodiegético, ou seja, aquele em que o narrador nos dá conta de episódios que o tiveram como protagonista. Importa aqui evidenciar o alcance da análise de Pavese, consciente da falsidade que implica apresentarmos uma narrativa distante, supostamente objectiva, como se proveniente do olhar de ninguém; pelo contrário, somos sempre nós que vemos e ouvimos, somos nós que pensamos, e disso sabia muito bem — talvez mesmo dolorosamente bem — o autor de Il Mestiere di Vivere. Numa das entradas iniciais de 1948, afirmou ele: «A tendência contemporânea para narrar na primeira pessoa é um esforço inconsciente para o natural que, contudo, tem de permanecer página, narrativa, e não gesto. É uma maneira de regressar à autenticidade, a única ainda viável» (p. 330). Já antes, de resto, tinha sabido definir com uma clareza notável, capaz de fazer corar de inveja tantos dos nossos actuais recenseadores de romances e contos, as especificidades da narrativa, afastando alguns equívocos generalizados. Um deles é o da importância das personagens, que Pavese remetia sobretudo para o teatro, e separava da construção de ficções em prosa. São de 1947 estas palavras, depois de haver afirmado que o maior narrador grego foi Heródoto e não Homero: «Agora há tendência para nos interessarmos novamente pela narração pura. Não se consegue sequer erguer personagens, é um trabalho banal, qualquer pessoa o faz. A descoberta reside no sentido do ritmo, no sentido da realidade agitada, que é típico de Heródoto. Somos ao mesmo tempo mais simbolizantes e mais intelectualistas» (p. 315).

Pavese sabia que este era o processo mais adequado à fragmentação da vida contemporânea, à impossibilidade de a reconstituir como uma totalidade organizada, uma vez que ela, como a alma de Álvaro de Campos, se partira irremediavelmente, fazendo-se até «em mais pedaços do que havia loiça no vaso»[2]. O autor italiano não ignorava como o olhar do artista deve então apontar numa direcção específica, pois o «que narra agora não é o que “conhece a natureza humana” e que descobriu psicologias significativas e profundas, mas que possui blocos de realidade, experiências angulares que dão ritmo, cadência e constituem a estrutura da sua obra» (p. 317). Não temos, aqui, a impressão de estarmos a ler uma subtil análise de alguns dos mais significativos narradores ocidentais das últimas décadas? Não nos parece familiar este discurso quando o aplicamos, por exemplo, a autores como Thomas Bernhard, W. G. Sebald ou László Krasznahorkai, autores cujas obsessões por inusitadas perspectivas nos fascinam, na medida que nos despertam para leituras do mundo tão imprevistas quão fecundas? E um olhar desses, rigoroso e detalhado, consciente da contemporânea impossibilidade de tudo abarcar — porque o tudo se tornou demasiado vasto –, não pode deixar de valer esteticamente mais do que as propostas ditas abrangentes, as quais, na absurda ânsia de tanto conterem, acabam quase sempre por se assemelharem a um movimento breve e saltitante, incapaz de deixar qualquer marca significativa onde pousa, dotado de uma leveza que, ao contrário da outrora proposta por Italo Calvino[3], não consegue superar a condição de voo rasante, e inócuo, da superfície.

[1] Todas as citações serão feitas a partir de O Ofício de Viver (Lisboa, Relógio d’Água, 2004), edição que recuperou a tradução de Alfredo Amorim (e tão bem o fez que se mantiveram claros erros de pontuação) e lhe acrescentou a tradução dos fragmentos inéditos e do apêndice por Margarida Periquito.

[2] Fernando Pessoa, Poesia de Álvaro de Campos, ed. Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 358.

[3] Cf. Italo Calvino, Seis Propostas para o próximo Milénio (Lições Americanas), Lisboa, Teorema, 1998, pp. 15–44.

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