Artistas pela abolição da tourada

Samuel F. Pimenta
Revista Caliban issn_0000311
3 min readJul 3, 2018

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A antiguidade de uma prática não pode servir de argumento para legitimar tradições que, aos olhos da contemporaneidade, estão totalmente desalinhadas da consciência que existe sobre o mundo. Por essa razão se fizeram leis que salvaguardam os direitos humanos e que protegem a natureza, pondo fim a práticas que, apesar de socialmente aceites outrora, hoje são rejeitadas. Por essa razão já não lutam gladiadores em arenas, pois aos olhos de hoje seria um acontecimento intolerável, face à compreensão que temos das sociedades e do que é ser-se Vida. Contudo, ainda existe quem dê continuidade a um ciclo de sofrimento inflingido à Terra desde os primórdios da era do heteropatriarcado. São muitos, demasiados, e ainda detêm poder, que usam em detrimento do colectivo e de uma consciência mais elevada, continuando a ferir profundamente a Terra. Entre eles estão todos os que continuam a suportar as touradas no mundo.

A tourada é um rito muito ancestral, isso é indiscutível. Porém, não é a antiguidade que torna o rito legítimo. À luz dos avanços da ciência, dos estudos de que já dispomos, a tourada é nada mais do que a promoção da violência, da tortura e da morte para divertimento humano, em que se submetem animais a elevados níveis de stress, ferindo-os, maltratando-os, provocando-lhes sofrimento, para que uma multidão expluda em aplausos e, na arena, se ergam os heróis. Mas não são heróis, os que se exibem na arena. Não. São carrascos. Podem ter aprendido a ritualizar o acto que os leva ao recinto, camuflando-o com vestes, com gestos, e assumindo uma postura teatralizada, mas não passam de torturadores. Porque espetar farpas num touro não é um espectáculo, não é cultura, não é arte. Não pode ser.

Há dias recebi a notícia de que associações pró-tourada em Portugal, Espanha e França assinaram um protocolo para, conjuntamente, prepararem o reconhecimento da prática como património cultural imaterial, fazendo pressão junto das Nações Unidas e do Parlamento Europeu. Em 2017, em Portugal, um projecto pró-tourada recebeu financiamento através do Orçamento Participativo, que se dedicará à promoção da “cultura taurina”. Curioso é estudar mais a fundo estes projectos e colectivos e descobrir que não são, de todo, descomprometidos politicamente, havendo uma tendência para que as ideias que circulam sejam de perpetuação de uma sociedade hierarquizada, e por isso desigual e dominada por elites (veja-se como a tourada se consolidou em Portugal durante a ditadura de Salazar ou como, em Espanha, ainda integra a narrativa do Estado — tendo servido, também, à agenda de Franco –, fazendo parte da agenda da monarquia). Ora, para estas organizações, a agenda não é “cultural”, mas sim política. Como sempre foi.

Para dar sinal de outro caminho a ser percorrido, um caminho sem touradas, o colectivo Acção Directa convocou diversas manifestações culturais e artísticas para o ciclo de touradas deste Verão previsto no Campo Pequeno, em Lisboa, fazendo o convite para estarem presentes escritores, poetas, músicos, cantores, bailarinos, artistas. Enquanto decorre mais uma tourada no interior da praça, na rua haverá uma mensagem clara do que é cultura e arte: haverá concertos, poesia, dança, pintura ao vivo, malabarismo e tantas manifestações artísticas quanto permite a imaginação. Sem sangue. Sem farpas. Sem morte. A primeira manifestação será já no dia 5 de Julho, a partir das 20h30, em frente ao Campo Pequeno (mais informação AQUI). As próximas serão nos dias 19 de Julho, 2, 9 e 23 de Agosto e 6 de Setembro.

Estarei presente, a dizer poemas. Porque acredito que a poesia muda o mundo, mas também porque nós, que defendemos a abolição das touradas, precisamos de unir esforços. Como defensor da abolição, não quero hostilizar ninguém, apenas quero que termine este ciclo de sofrimento, tantas vezes suportado pelo poder político. Quero, em vez da apologia da violência sobre a Vida e a Natureza, a promoção da consciência de que todos estamos interligados, de que uma farpa num touro é uma farpa na evolução da humanidade. E nós, os que defendemos o fim das touradas, temos de empoderar a nossa voz, pois não nos movemos a favor da abolição por uma birra que alguém se lembrou de inventar. Movemo-nos, sim, pela liberdade, pela liberdade de todos os seres vivos. Os aficionados organizam-se, resistem, tal como resistiram os esclavagistas e os ditadores. Mas um dia, como nos ensina a História, também acabarão por cair.

Samuel F. Pimenta

Escritor

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Poeta, escritor, artista. Dedica-se ainda à promoção dos direitos LGBTI+, dos direitos humanos e dos direitos da Terra. https://samuelfpimenta.com