Análise e apresentação do livro MORRER E DEPOIS por Marina Quintela

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
10 min readApr 4, 2024

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Maria José Quintela Foto por Luís Aguiar

Análise e apresentação do livro MORRER E DEPOIS

Falar de uma obra sobre a qual a própria Maria José Quintela afirma que constitui” (…) um exercício de leitura que convoca o leitor a derrubar fundamentos, a reerguer alicerces e a recriar a viagem à medida da sua convicção” é, no mínimo, fazer uma incursão (ou várias) para dentro e ao mais profundo daquilo que constitui o mais íntimo do nosso ser, de assumir e de pôr a nu as fragilidades que nos assistem, mas que fazem de nós, tão somente, o que somos.

Todos sabemos que o enigma da morte constitui um dos principais (senão o principal) focos de interesse do homem desde tempos imemoriais, refletindo-se em questões como: o que acontece quando morremos? Se, efetivamente, existe, o que é e para onde vai a alma? Há realmente um espírito que sobrevive para além da morte física?

Houve povos — entre os quais os egípcios — para quem a morte era o acesso à verdadeira Vida, enquanto que a passagem pela terra constituía simplesmente uma preparação para ascender a esse outro estado, segundo eles, mais perfeito, mais intenso e mais espiritual. Por esse prisma, para eles a morte era passageira, pois que se tratava de um meio para alcançar um fim, e esse fim era unicamente o meio para atingir um princípio…

A propósito disto, diz-nos a Maria José Quintela, logo no início da obra — e talvez em jeito de prevenção -, que irá tecer algumas considerações sobre “a extraordinária viagem dos corpos”, remetendo logo a seguir para “(…) o processo que transita os corpos de uma dimensão para a outra.”

Neste ponto, é provável que alguns dos presentes tenham já começado a questionar, ou a questionar-se: então é isto em que a Maria José Quintela acredita? Que ela defende?

E eu apenas respondo, recorrendo às próprias palavras da autora, que os poetas não têm barreiras, possuindo, portanto, total liberdade para dizerem o que quiserem da forma que melhor entenderem. Por outro lado, ela também afirma que “o mais importante é que o leitor faça a gestão das palavras, dos silêncios e dos sentidos de forma a obter a sua poção pessoal.”

Quanto a mim, que não sou poeta, acato com humildade este conselho que ela nos dá, no sentido de refazermos a viagem à medida das nossas crenças.

Chegados a este ponto, lanço então mais algumas achas para a fogueira, recorrendo a uma afirmação que recordo de Haruki Murakami, na qual ele defende que a morte não é o oposto da vida, mas uma das suas partes constituintes, aqui assumindo eu que não pude deixar de considerar muito interessante o que também a autora nos diz, embora com diferentes palavras: “…desdobram-se (eles, os mortos/almas/espíritos)em variadíssimas espécies, pólenes, átomos, aminoácidos, para se reagruparem em diagramas complexos. nada os dissuade de repetir o acto da criação, o que vem depois é o que veio antes. “(1)

Maria José Quintela e Marina Quintela — Foto de Luís Aguiar

A partir de uma determinada idade (variável de uns para outros), mas de um modo geral, as pessoas começam a colocar-se todo um tipo de questões relacionadas com a sua existência, o seu papel no mundo. Pessoalmente, estou até convencida de que estas interrogações não têm tanto a ver com a idade, podendo surgir a qualquer momento da nossa vida, ativadas por acontecimentos ou situações que nos obrigam a refletir sobre a nossa condição. Já agora, e mais uma vez, e ainda porque acabei de aludir à “nossa condição”, o presente livro da Maria José Quintela, na linha dos anteriores e no fio condutor- apesar de nem sempre facilmente detetável-, que os une, mais não é, na minha opinião, do que uma “outra” abordagem sobre ela, pois que aponta, também uma vez mais, e sempre, para o/os sentido/s da vida, esta entendida como aquela de que temos mais ou menos consciência, em oposição a outra ou outras nas quais poderemos acreditar ou a que poderemos aspirar.

E se a primeira palavra do título poderá — ainda que instintivamente — provocar-nos um sobressalto e fazer-nos recuar uns passos (de susto, de surpresa ou de ambos), a segunda abre-nos um leque imenso de possibilidades, mais ou menos assumidas, mais ou menos desejadas, mais ou menos intuídas, segundo a medida de cada um de nós.

A verdade é que, apesar de todas as teorias e testemunhos, experiências e certezas, ninguém sabe dizer se ou o que acontece depois da morte — palavra esta comummente aceite para traduzir a cessação das funções do nosso corpo físico.

Ainda assim, registe-se que é bastante pacífica a ideia de que a vida adquire maior sentido se se considerar a morte como um descanso natural, adquirindo a primeira um outro valor se concebida como um dos dois lados de uma dimensão.

A este propósito, realço de novo as palavras da autora na sua nota ao leitor, em que assume atrever-se a um ponto de vista poético sobre a circulação dos corpos e o processo que os desvia de uma dimensão para a outra, desdramatizando a vertente hermética.

Assim, sou tentada a reafirmar que, de uma forma mais ou menos consciente, mais ou menos declarada, todos nós, em qualquer altura, ou várias, do nosso percurso, procuramos encontrar esse sentido da/e para a vida, embora, na maior parte das vezes, o façamos da forma errada, já que, frequentemente, atribuímos a terceiros a responsabilidade das nossas ações, tentando atenuar a sua gravidade e o medo através de orações. Diz a Maria José Quintela, a respeito, que (os vivos) “descartam os erros maiúsculos em orações sem vínculo e adormecem descansados na lisonja dos oráculos. desviam a própria luz, acusando os outros da própria infâmia. acalmam os corações breves com credos artificiais, como mortos-vivos em prontidão.” (6)

E aqui começo a destapar um pouco mais o véu, pois já é altura de estabelecer uma qualquer ligação entre o que adiantei até este momento e o que a Maria José Quintela nos diz, pelo que, e sem querer de modo nenhum reclamar a minha identificação (ou a dela) com qualquer teoria — afinal, seria apenas uma de entre, talvez, centenas de outras -, destaco um pequeno excerto da obra em que me atrevi a mergulhar: “movem-se como satélites convergentes e antagónicos. sucedem-se no proveito e na desgraça. celebram glórias e galardões, permeáveis a sofismas e tendências.” (11)

Há quem defenda que a vida e a morte não só se apoiam, como se complementam, argumentando que, se agora estamos vivos, por semelhança e analogia, viemos de alguma outra forma de vida e dirigimo-nos para um outro aspeto da vida também, do que se pode inferir que aquilo a que chamamos morte não é senão o outro lado da vida.

Portanto, regozijemo-nos!, pois que à geralmente aceite falta de conhecimento dos vivos perante o que poderá vir depois, ideia que poderá ser reforçada pelas palavras da Maria José Quintela quando escreve que “(…) cumprem o tempo de quarentena, transplantam-se no útero que os nidifica, e prontamente amadurecem. por agora nada os apropria ou apoquenta, são seres em evolução.”, (42) também os mortos são confrontados com uma condição para a qual não foram avisados, muito menos precavidos “nem sempre estão preparados para a transição etérea, mas os tambores rufam de dentro para fora expulsando a hesitação (…) regressam ao leito polifónico do vento, curiosamente integrais e flexíveis” (33) e que, de todo, desconheciam” batalham a vida inteira contra a morte e a morte não basta para morrer de vez. revisitam as eras, as luas, os lutos, os ritos iniciáticos, os arquétipos cósmicos, admitem a probabilidade de retorno e a oportunidade de reparar os erros.” (20), mas à qual se adaptam com toda a facilidade “(…) atravessam o cosmos no eco uterino de gerações infinitas, cruzam-se com e mil rostos e assimilam a grafia dinâmica dos modelos celestes. são a parca parcela de uma obra colossal.” (11), para não dizer, até, com felicidade. Senão, vejamos também estas palavras da autora:” olham demoradamente para as mãos. tocam, brincam, escrevem, agridem, arrasam. (…) (1) ou ainda “não importa de onde venham, se tocaram o ar, o fogo, a terra, a água, simplesmente brilham. pulsam na terra e na insónia dos rios, pousam no arco-íris e despertam as cores da memória, unem-se ao pensamento de quem os reconhece na anatomia do céu. desbridam o firmamento, avaliam a escala das formas luminosas, escalam as marés e os montes lunares, e, como cálidos incensos, ardem a ansiedade nos meteoritos e alargam a dança de roda a cada um que passa. afinal, já todos foram todos. (43)

Acreditar que depois desta vida que conhecemos (ou julgamos conhecer) haverá outras existências permanentes — felizes ou atormentadas, segundo os” pontos” acumulados -, equivale a ter que aceitar a pré-existência da alma, pois seria absurdo pensar na permanência de algo que nunca existiu antes de aparecer. Assim diz a Maria José: “passam no teste de uma paragem cardíaca, falsamente inanimados, abertos à transferência de fluidos e de genes, a alma preservada numa caixa forte.” (11)

A imortalidade da alma foi e continua a ser a base de muitas religiões e filosofias distintas, algumas delas defendendo que o facto (por elas tido como certo, sem discussão) de vivermos várias vezes na terra com diferentes aparências como humanos é análoga ao modo como a Natureza inteira se renova ciclicamente, sem morrer definitivamente em cada uma das estações do ano. Erguendo um pouco mais o véu, também a Maria José Quintela anuncia, na sua Nota ao leitor, “(…) um exercício de promiscuidade saudável entre vivos e mortos (…) já que (…) é impossível distinguir uma flor que morre da flor gémea reposta na estação seguinte.”

Ainda a propósito dos “pontos” acumulados — ou não -, durante a vida, a autora patenteia (uma vez mais também) uma visão extremamente crítica (pergunto eu: ou talvez um grito de alerta?) dos vivos face a uma, ou várias, eventuais pós existência: “cultivam o elogio fácil na mira da recompensa, invocam morais duvidosas, das quais se eximem, sinalizando um transtorno bipolar. assim vão, entre o ser e o parecer, tão iguais no desenlace, (…) “. (3) E tão mais importante se torna realçar esta visão quanto, um pouco atrás, ela refere o seguinte: “(…) despojam-se de reputações fúteis e adornos extravagantes, até que nada lhes sobra e nada lhes falta.” (2)

Sem qualquer dúvida que a justiça e a igualdade aportadas pela morte — em contraponto com a desigualdade e desequilíbrio verificados em vida — assumem especial relevância nesta obra, o que se pode, desde logo, verificar também neste excerto:” menosprezam as centelhas que deflagram alarmes, e disfarçam-se em muitas formas de ser. são muitos em cada um, sem exactidão matemática, por um dever metafísico. somente na morte são consensuais.”, (4) inferindo-se desde logo que só a morte estabelece o verdadeiro equilíbrio que tão afastado se encontra das relações entre os vivos.

Sobre o arbítrio divino — igualmente presente em obras anteriores -, a Maria José Quintela continua a ter que dizer: “encaram os espelhos experientes na arte de bem mentir e de bem morrer, esperando na calada da noite pelo secreto fulgor dos presságios sujeitos ao arbítrio de deus.” (15). Daí que “vivem de costas para a morte e de lado para a insónia que arremete contra o peito, tentam anular a ameaça que aponta aos alvos instáveis. não se furtam à fantasia combinada nos sonhos, produzindo um teatro de sombras com carácter reservado. amanhecem predispostos a esquecer.” (5)

E é talvez também por isso que “com culpa ou sem culpa, recorrem a mantras para travar o feroz confronto.” (24)

Embora saibamos ser mais do que certo (afinal, nunca ninguém regressou para contar…) nunca se vir a resolver o maior de todos os mistérios — o que acontece após a morte -, há, para muitos de nós, a esperança, a convicção — a certeza, para alguns -, de fazermos parte de algo maior, à imagem do que a Maria José Quintela adianta: “(…) a estadia não dura para sempre, a matéria range e reage, assumindo as falhas do coração. Regressam ao leito polifónico do vento, curiosamente integrais e flexíveis.” (33)

Segundo Osho, a morte é a maior ilusão que existe, já que há um momento em que percebemos que ela é apenas um trocar de roupas ou trocar de casas, um trocar de formas. E, de certo modo, há uma identificação entre esta ideia e as palavras da autora quando diz que” desocupam a casa com a mesma desfaçatez com que a habitaram, magnânimos na herança material e avaros na transmissão dos segredos. inaudível é o santo-e-a-senha, invisível é a passagem e a mão que desliza o trinco, indizível é o frenesim dos anjos que acendem os holofotes.” (32)

Nesta obra, agrada-me sobremaneira a imagem dos corpos e almas, ou vivos e mortos, ou matéria e espírito — ou o que lhes queiramos chamar-, coexistirem livremente numa convivência nem sempre muito saudável, nem sempre muito pacífica, quase nunca percebida, mas tantas vezes pressentida:” aparecem e desaparecem nos interstícios da paisagem, discretos ou indiscretos, intransmissíveis. revezam-se sem escrúpulo de idade ou preconceito de género. alguém os guiará, aos ímpios e aos crentes, uns aliviados do engano, outros arrancados ao chão, irmanados na secreta missão que os desconjuga de si, aparentemente absolvidos do bem e do mal. o subsolo assenta-lhes tão bem como o colo improvável de uma nuvem.” (38)

A verdade é que são muitos os que tentam, por um meio ou por outro, ultrapassar a barreira intransponível. Sentem falta de voltar a tocar ou ouvir quem tenha partido para “sentir” que está próximo, sendo que, e mais uma vez de acordo com imensos relatos, experiências e testemunhos, muitos estarão certos de terem estabelecido uma espécie de comunicação com os entes queridos desaparecidos, pois existem relações psicológicas, afetivas, mentais, morais e espirituais permanentes. Daí talvez não ser tão descabido aceitar aquilo que muitos insistiriam em negar, sobre a possibilidade de alguém estar do “outro lado” também a fazer esforços para chegar até nós: fala-se de brisas inexplicáveis, de murmúrios indefiníveis ou de sussurros indecifráveis, para tentar explicar a presença que garantem reconhecer.

Faria então talvez algum sentido aceitar aquilo que para tantos não deixa dúvidas: a morte tem mais segredos para nos revelar do que a vida. Mas isto sou eu quem diz…

Finalmente, e porque embora não seja poeta, como já afirmei, mas porque sou sensível às mensagens dos que o são, e ainda porque os temas acabados de abordar me predispuseram e proporcionaram abertura para outras perspetivas inerentes à minha condição de ser vivo (leia-se, humana) deixo-vos com uma frase de Confúcio, à laia de recado para mim própria:

“Quando nasceste, ao teu redor todos riam, só tu choravas. Faz por viver de tal modo que, à hora da tua morte, todos chorem, só tu rias.”

Marina Quintela, Março/24

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