Algumas ideias para filmes de terror

Ney Ferraz Paiva
Revista Caliban issn_0000311
4 min readJun 25, 2023

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Por Gabriel Morais Medeiros

Emily Graham, 2017

Em Cazadores de ocasos: la literatura de horror en los tiempos del neoliberalismo, Miguel Vedda comenta a aparição frequente de tipos infantis em narrativas terroríficas contemporâneas. Segundo o crítico, a criança seria alegoria de um período histórico-econômico em que as pessoas se encontram em situação de absoluta fragilidade, à deriva ante o mercado, sem agência ou capacidade de reação. Daí que ficções como “El chico sucio”, de Mariana Enríquez (o conto abre o livro Las cosas que perdimos en el fuego), sejam tão representativos da sensibilidade dos dias correntes.

Terror e infância: esses também são os eixos centrais de Algumas ideias para filmes de terror, livro de poemas de Maíra Vasconcelos, publicado pela 7Letras em 2022. Neste excelente livro, entretanto, não há exatamente uma tentativa de se causar efeitos de inquietação, medo ou pavor, através dos breves poemas, como existe em Enríquez. Antes, fragmentos e reminiscências de um mundo aterrorizado (logo, consciente e espiritualizado) é que tomam corpo: entrechos de filmes B, relâmpagos de luz estranha, insetos mortos, presságios. Há, na obra, uma história sentimental e pessoal, até nostálgica, de máquinas de sentido e desejo conectadas aos gêneros-horror das últimas décadas. Assim, com grande originalidade, veste-se de sentidos afetivos o livro de Maíra Vasconcelos.

A poeta constrói algo entre arqueologias culturais (os sistemas das velhas locadoras, hoje extintas) e diários perfumados, papéis de carta. Algo entre tabuleiros de jogos de papelão, relances espelhados, luzes não identificadas, errâncias e derivas, efeitos especiais: “não há garantia alguma/ se onde estão os pés descalços/ estaremos posicionados em luz/ olhe, por exemplo, aqueles barcos e as águas do rio/ posicionados em luz/ como se nunca pudessem nos afogar/ mas apenas nos banhar”. Este insólito poema é bem representativo do tom geral da publicação. Veem-se reflexos, fagulhas, cintilações ao léu. Nesse texto, não se sabe, exatamente, onde está o horror — se é que o horror existe –, só que, nos lacônicos versos, é certo que deve haver alguma coisa. Assim se tece um efeito de dizer e não-dizer que joga com as expectativas de leitura, o tempo todo, e ora se oculta, ora se insinua, sempre com grande habilidade poética: veja-se que os reflexos na água, de forma gráfica, são sugeridos pela repetição de “posicionados em luz”.

Susanna Paasonen costuma comparar os filmes de terror à comédia, ao melodrama e à pornografia. Os quatro compõem gêneros que tentam, com maior ou menor capacidade, causar reações físicas, ressonâncias carnais, no público. Lágrimas-melodrama; susto-terror; risos-comédia, prazer-pornografia. Seriam gêneros — literários ou cinematográficos, segundo a pesquisadora — extremamente fisiológicos, por essa razão. Os poemas de Maíra Vasconcelos estão na contramão desses possíveis fisiologismos.

Porque se realça, nos poemas da autora, uma dimensão da memória, do luto e do dizer sutil, em voz baixa. Projeção hábil de fantasmas, que aparecem numa série de espelhamentos temáticos: da perda da inocência — a criança que testemunha a morte da amizade, ou que mata uma formiga, como se diz no primeiro poema — ao massacre de animais; do cachorro falecido, a quem ainda se dá comida e pequenas oferendas, a tristeza-lembrança, à sensação de ameaça iminente, de catástrofe a vir, com que o tempo-capital nos limita, disciplina e aprisiona: “lia na cozinha/ e de repente/ parecia que o forno ia explodir/ poderia ser um problema na saída de gás/ certa vez/ fui visitar um amigo no quinto andar/ o concreto poderia ceder/ sempre de repente/ algo pode pegar fogo ou desabar/ e essas impressões catastróficas são como me aproximar do meu avô/ que foi à guerra/ e sempre que chove pode vir uma enchente/ e ele aparece”.

Há alguma coisa neste livro. Se um cachorro encara um beco fixamente, um fundo de quintal sombrio, certamente ali não se esconderá algo, não necessariamente visível? Munido dessa pequena comparação, penso que, com ela, se deve ativar a máquina de significação de Algumas ideias para filmes de terror, de Maíra Vasconcelos. Talvez se deva ler este livro não à procura do gore, das vísceras, do espanto, do cor frixit prae pauore — o coração congelado de pavor –, da ressonância carnal, mas sim em busca da ternura, da evocação, do reencontro, da elegia e do lamento, enfim do exercício, muito mais sutil e mais terno, do luto e do pertencimento. O tom do livro não é o das sombras, mas sim o da “parte transparente de nós”.

Gabriel Morais Medeiros

Cidade do México, 24/02/2023

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