ALBERTO PUCHEU E «vidas rasteiras»: UM CALEIDOSCÓPIO DE VOZES PARA A CATÁSTROFE DE NOSSO TEMPO E DEPOIS

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
34 min readMar 9, 2021

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Sandro Adriano da Silva[1]

Esta entrevista ocorre, para usar uma palavra do próprio entrevistado, em meio ao horror. Nós, brasileiros e brasileiras, na contramão da maior parte do mundo, sofremos a perda de mais duzentas e sessenta mil vidas — e o prognóstico é desolador para os próximos meses — por conta de uma política deliberadamente genocida, anticiência e negacionista, defendida pelo presidente da República e com o aval de seus asseclas. O Brasil está em luto, sem o direito de ritualizá-lo, não apenas pelos protocolos internacionais, mas, e sobretudo, porque a dimensão da catástrofe é inimaginável, e o cômputo das mortes por COVID-19, projetadas pelos veículos de comunicação, e com suspeitas de subnotificação por parte das autoridades de saúde pública, fazem surtir um efeito de letargia.

As fakes news disseminadas pondo em descrédito a eficácia da vacina contra o corona vírus, a ingerência do Ministério da Saúde e a crise econômica atingem a todos e todas, mas especialmente os mais vulneráveis economicamente. Vivemos hoje, em grande medida, as consequências de um quadro político nefasto que se iniciou com o golpe político perpetrado contra o governo da presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2015, que culminaria com seu impeachment. Sob a égide do chamado “antipetismo” — uma visão partilhada, inclusive, por parte de segmentos da esquerda brasileira, o atual presidente elege-se com um pouco mais da metade dos votos válidos.

É auscultando esse cenário que Alberto Pucheu, poeta, crítico e professor de literatura, dá início, em 2018, logo após o primeiro turno das eleições presidenciais, a Poema para a catástrofe do nosso tempo, que integra vidas rasteiras, publicado no ano passado, pela Cult Editora. Na obra, Pucheu amalgama um eu lírico que percorre a cidade, lança sobre ela um olhar de perquirição, e, sobretudo, como ele mesmo afirma, ouve suas vozes. Vozes anônimas, efêmeras, algumas impessoais, outras cujos nomes reverberam nos poemas uma verdadeira polifonia existencial, como um caleidoscópio que reflete as combinações variadas, plurais, contraditórias, em tudo, intensas do tecido social.

Um poema-manifesto que imprime em relevo o tom elegíaco do nosso tempo, como enuncia o eu lírico, nos versos iniciais: “Amanhã não será um dia melhor/do que hoje, que não é um dia/ melhor do que ontem”. O tom melancólico, com efeito, está longe de flertar com a ideia de Adorno, quando vaticinava a impossibilidade da poesia pós-Auschwitz; nem o eu lírico pucheuniano evade-se da praça dos convites, para lembrar a interrogação do poema de Drummond. Ao contrário, sua atitude e as linhas de força de sua poesia são as de uma orquestração dessas vozes como signos da inserção histórica (do passado imediato, do presente agônico e do futuro imprevisível), política e existencial que se definem pela resistência subjetiva do e no discurso poético. É se notar que a acústica dessas vidas rasteiras, com suas tensões intrínsecas e a reverberação de seus apelos e demandas, revelam o método de colecionador benjaminiano de Pucheu, um pouco como Guimarães Rosa e seus cadernos de anotações sobre o sertão e “os crespos do homem”. Para reger, Pucheu desce o tablado, põe-se ao rés do chão, lado a lado, para melhor ouvir

[…]

o som

dessas vidas miúdas

mimosas

mesmo que frágeis

tentando vingar

tentando

se fazer

valer tentando

se adequar

ao que encontrar

pelo caminho

tentando se desviar

para não

se ferir […]

SANDRO ADRIANO — vidas rasteiras[2] (2020) é um livro polifônico, que orquestra múltiplos eus líricos; um livro, portanto, que, mais do que dar voz ao povo, recolhe e reverbera essa voz. Em alguma medida, é um retorno à sua primeira incursão pela poesia, considerando Na cidade aberta (1993), em que um poema epigráfico informa: “(poema colhido na boca de um transeunte na Maria da Glória)”?

ALBERTO PUCHEU — Não apenas a epígrafe de Na cidade aberta, mas também o último poema do livro “Na cidade aberta, no. 3”, estaria dentro dessa orquestração, sendo ele feito apenas com vozes colhidas da Central do Brasil e de vendedores ambulantes no trem que então eu pegava. A partir desse poema, vieram outros nos livros seguintes e até mesmo um livro inteiro feito apenas com recolhimentos de frases alheias. A esse modo de poemas, chamei “arranjos”. O hoje professor da UERJ Maurício Chamarelli escreveu em certo momento um belo ensaio sobre eles. No vidas rasteiras, há uma parte integralmente feita com frases do presidente necrocrata, intencionalmente negacionista, sobre a pandemia; e outra parte, vinda imediatamente antes, feita exclusivamente com testemunhos de Cecília Coimbra, torturada durante a ditadura, e da advogada Eny Moreira, testemunha do corpo torturado de Aurora Maria Nascimento Furtado. Para mim, há um choque imenso nessa montagem, nessa passagem entre inconciliáveis. Nesse livro, entretanto, tem muitas outras vozes que comparecem, tornando-o, como você bem disse, um livro polifônico, de uma polifonia de testemunhos e do que foi dito em diversas escalas, de uma polifonia decididamente política. Se tais apropriações marcam um vetor de continuidade do meu trabalho desde o início, entendo haver em vidas rasteiras tanto uma intensificação do meu percurso quanto vínculos ainda mais fortes com meus últimos livros imediatamente anteriores a ele, mais cotidiano que o cotidiano e Para que poetas em tempos de terrorismos?

SANDRO ADRIANO — O poema homônimo, “vidas rasteiras”, abre o livro com uma elegia contemporânea, de matiz social, e contém uma nota melancólica de resiliência dessas personagens líricas da vida real. Como foi o processo dessa criação, qual o limite, se o há, entre poesia, experiência, imaginação e sentimento nessa cartografia do social?

ALBERTO PUCHEU — Nunca sabemos o quanto temos de viver, sentir, ler, ouvir, ver e pensar para fazer um poema. Tem horas em que tudo se condensa a tal ponto que acaba explodindo em uma frase, em um ritmo, em que apostamos, que nos perseguem e que os perseguimos. Dani e eu havíamos ido a São Paulo para ver a Bienal de Artes (na qual Nelson Félix, amigo querido e artista admirável, fazia uma instalação que se desdobrava pela Ocupação 9 de julho e pela Galeria Millan), a exposição do Weiwei, ali do lado, na Oca, e a própria Ocupação 9 de julho. Como de costume, meus amados Roberto Corrêa dos Santos e Domingos Angotti nos emprestaram o apartamento do Largo do Arouche. Tudo isso foi muito impactante para mim, incluindo o encontro com Dona Leila, moradora da Ocupação, encarregada de ser guia da exposição na galeria Reocupa, que então inaugurava. De noite, fomos a um bar ali no Largo do Arouche. Uma senhora, moradora de rua, aproximou-se para se proteger da chuva, falando alguma coisa com a gente. Estendemos a conversa, convidei-a a se sentar, a comer com a gente e, assim, dona Laura, aquela senhora indígena, há décadas desaldeada, contou-nos sua história impressionante, comovendo-nos imensamente. Não me lembro exatamente se foi na mesma noite, no dia seguinte, na semana seguinte ou quando comecei o poema, mas é certo que a sensação do poema já estava na história de Dona Laura e dessa história se encontrando com a de Dona Leila, encontrando-se com as instalações e desenhos de Nelson Félix e com as obras de Weiwei. Eu já ouvia o poema em tudo que Dona Laura nos dizia, e o testemunho dela, muito sofrido, muito brasileiro, me soava um poema inteiro dos mais impressionantes e imprevisíveis saindo pela boca dela — faltava apenas eu conseguir encontrar o caminho do meu poema. Apesar de todas as diferenças que há entre Dona Laura e Dona Leila e entre Nelson Félix e Weiwei, apesar de todas as diferenças, ainda infinitamente maiores, que há entre as senhoras e os artistas, parece-me que era nesse entrechoque todo que eu me situava, ainda que os artistas deveriam (praticamente) se esconder nominalmente no poema para que o foco dele fosse o testemunho demasiadamente impactante que nos foi dado por Dona Laura e também por Dona Leila. O foco era a vida vivida e narrada por essas mulheres. Mas a presença do impacto do trabalho deles sobre mim também levava as questões brasileiras para se atritarem com outras, das américas e do mundo. Quando você me pergunta “qual o limite, se o há, entre poesia, experiência, imaginação e sentimento”, minha tendência é pensar exatamente nas intensidades que se deram tanto a partir de cada um de tais encontros e nas intensidades dos desguarnecimentos dos limites dos encontros. Quando tudo é intensidade, como lidar com limites? Encontrar algum limite, móvel e fluido, para que algo de toda essa intensidade de cada um dos encontros e de seus esbarros possa ser guardado é o a que o poema se dedica.

SANDRO ADRIANO — A poética de vidas rasteiras indicia sobretudo um ritmo frenético, em que a leitura metaforicamente “rasteja” pelo verso, em função especialmente da pontuação e do enjambement (sobretudo nos poemas “vidas rasteiras”, “essas pessoas”, “lá dentro do que então se supunha”, “há sempre um poema”, “uns e outros”), revelando uma dicção prosódica. O tratamento dado à metáfora também aponta para imagens mais referenciais da crônica do cotidiano. Portanto, tomado no conjunto da sua produção, pelo menos no painel estético-temático de A fronteira desguarnecida (Poesia reunida 1993–2007), seu novo livro é um vórtice, uma guinada. Poderia comentar esse percurso?

ALBERTO PUCHEU — No lançamento virtual do livro pelo canal do Youtube da Cult, o querido Tarso de Melo deslocou, para mim inesperadamente, o “rasteiras” do título dizendo que os poemas passam “rasteiras” no leitor; agora, você, igualmente me surpreendendo, fala da leitura que “rasteja” pelo verso. Tenho uma atenção imensa ao que escuto do ritmo do poema, ao colocar ou tirar pontuações e aos enjambements, que, aliás, já foram tema de vários ensaios meus. Colocar ou tirar pontuações e o modo de usar os enjambements são fundamentais para o poema, a ponto de poder falar em enjambements intensivos, em ausências intensivas de pontuação. Buscar com isso a poesia no cotidiano, ou, seria mais exato dizer, conforme o título de um dos meus livros, em um “mais cotidiano que o cotidiano”, ou, poderia também dizer, em um cotidiano político, ou, poderia também dizer, em um cotidiano pensado, é uma das coisas que muito me interessam.

Quanto à guinada ou ao vórtice que você diz do vidas rasteiras, poderia dizer, fugindo um pouco da questão para poder encará-la, que um livro que escrevemos ultrapassa totalmente a capacidade que temos de falar dele. Se, com livros de outras e outros poetas, quando tentamos fazê-los falar por nós, estamos sempre aquém ou além deles — nunca neles –, dos nossos, parece-me que estamos sempre aquém. Ao menos, é como sinto. Uma maneira, entretanto, de falar deste vidas rasteiras, mas de fora dele, pode ser inseri-lo na história recente da minha poesia e do Brasil. Meu livro mais cotidiano que o cotidiano, publicado em 2013, tem muitos poemas que lidam com o nosso país do momento da passagem do governo Lula para o governo Dilma, em 2010, até as jornadas junho de 2013, incluindo-as; o livro seguinte, Para que poetas em tempos de terrorismos?, publicado no Brasil em 2017 e em Portugal em 2019, tem muitos poemas (inclusive o que o intitula) que lidam com o Brasil do golpe de 2016, do golpe, com os militares, “com o Supremo, com tudo” (com a grande mídia, o Judiciário, o Congresso, o empresariado…), dado na Dilma e no povo brasileiro. O livro vidas rasteiras — em minúsculas mesmo — termina com o longo “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, que, em suas vinte e uma partes, foi escrito durante a necrocracia perversa prometida e cumprida pelo governo Bolsonaro, buscando dar voz também a imbricação entre o atual presidente e a pandemia. Tal poema começou a ser escrito na semana anterior ao segundo turno das eleições de 2018, tendo sido retomado, e muito ampliado, a partir da passagem de fevereiro para março de 2020, quando a pandemia chegou entre nós, sendo, mais do concluído, propositalmente interrompido, no dia 11 de maio de 2020.

Como já falei do poema que intitula o livro, poderia dizer que toda a primeira parte do livro é feita com poemas que lidam com o nosso tempo, em sua dimensão política, social, poética, afetiva, tendo uma escuta para testemunhos anônimos de pessoas do nosso tempo… Um vendedor da Ortobom, uma aluna… Há ainda um outro longo poema, “Por amor”, que foi escrito em uma viagem que Dani e eu fizemos à Tailândia, ao Vietnã e ao Camboja: é um poema a um só tempo de amor, de viagem e político, que ainda traz uma reflexão sobre fotografias que tirei ao longo da viagem. O poema se estende na volta da viagem quando fomos conhecer o Dops, em São Paulo, por conta de uma experiência ocorrida em Phnon Penh, onde fomos ao Museu do Genocídio Tuol Sleng e às The Killing Fields, bem como, em Ho Chi Minh ou em Saigon, ao Nha Trung Bay Toi Ac Chien Tranh, o museu dos vestígios da guerra dos EUA contra o Vietnã. Há também um poema escrito com Danielle Magalhães, o “em off”, oriundo de leituras que fizemos juntos da poeta Annita Costa Malufe, de uma entrevista que nosso grupo de pesquisa fez com ela, bem como de conversas de bares que tivemos com querida amiga e poeta, sobre quem também escrevemos. Mas, apesar de tudo, isso ainda é estar bem fora do livro, mencionando apenas alguns de seus temas. Meu desejo é convidar o leitor a ler o livro, a ler os poemas, o que me parece — ao menos espero que seja assim — muito mais potentes do que o que consigo falar deles.

SANDRO ADRIANO — A cidade é um arquétipo em sua poesia, desde o Na cidade aberta (1993), apresentando um eu lírico flâneur-voyeur que não apenas descreve, mas experiencia o espaço em diferentes matizes (o cotidiano banal (?), a solidão, o tumulto, a violência, a impessoalidade, o erotismo), provocando o desejo por uma “ecometria do silêncio”, título, aliás, do livro publicado em 1999. Em A vida é assim (2001), a relação entre o espaço e cidade é tão visceral que é alçado à condição de “Autobiografia literária” — título de um poema que traz os versos “[…] e o que a língua não fala, falam os braços, as pernas, buzinas, ondas, engrenagens…” A “vidas rasteiras” também é uma ode à polifonia (social, política, existencial). Poderia comentar essas relações no todo de sua obra? E como você capta e traduz essa paisagem?

Você flagrou com precisão uma das diagonais de força predominantes em minha poesia. “Na cidade aberta” é tanto o título do primeiro livro quanto de partes de livros subsequentes. Apesar de usar muitos elementos da cidade nos poemas, o que eu mais procurava era uma sintaxe urbana a partir mesmo da polifonia, como você tem repetido, da cidade. Assim, onde você fala do flâneur-voyeur, eu gostaria de acrescentar um écouteur, esse que, além de colher imagens, ouve vozes, frases e sintaxes da cidade. A própria expressão “a fronteira desguarnecida” (título de um poema, de um livro e da poesia reunida de 2007) vem exatamente desse desguarnecimento das fronteiras entre o corpo e a cidade. Depois, nos livros teóricos ou críticos, ela se expandiu para falar igualmente do desguarnecimento das fronteiras entre poesia e filosofia, entre poesia e crítica. É um conceito poético-teórico muito norteador para mim. Como não pensar nele ao me lembrar do fotocinepoema intitulado “Por amor” (fragmento do poema homônimo que se encontra no vidas rasteiras) ou na experimentação em vídeo “Hermes, a tartaruga e a lira” ou, antes, das fotografias e exposições-instalações (como a da Oi Futuro) com as frases grafitadas em muros urbanos? Como não pensar nele ao lembrar dos filmes que tenho feito com poetas? Acho-o mesmo um conceito decisivo para modos que me permitem criar em nosso tempo, pensando-o. Havendo, desde o começo, essa força da cidade, a explicitação política dos últimos três livros talvez possa ser vista mais como um “vórtice” do que como uma “guinada” — afinal, política diz respeito à pólis, à cidade.

SANDRO ADRIANO — Em um fragmento do longo poema Performance para um corpo concentrado e sua voz (inédito), publicado no A fronteira desguarnecida, o eu lírico enuncia: “[…] o rosto do escritor/ ou do professor/ é tão afeito/ às deformações/ quanto o quem/ canta/ talvez por/ no escritor/ no professor/ ou no cantor/ as deformações/ partirem/ das entranhas/ do corpo/ até/ se atualizarem/ em máscaras/ com as quais/ ela teimam/ se mostrar”. Você é poeta, professor e crítico de literatura, e em vidas rasteiras você explicita vozes filosóficas importantes da atualidade (Butler, Zizek, Agamben, entre outros), reverberando uma atmosfera quase didática, ao tratar dos temas imediatamente contemporâneos. Fale um pouco sobre esse (des) mascaramento autoral, essa ranhura entre o poeta, o professor e o homem.

Quando comecei a fazer a faculdade de filosofia, esta foi muito importante para minha vida e, consequentemente, para tudo o que escrevia. Se eu lia textos e livros de filosofia, se eu os ingeria e os ruminava, a saída mais confortável para mim era pela poesia. Nesse sentido, a filosofia sempre impulsionou a poesia para mim, adentrando-a. Depois, quando comecei a dar aulas na UFRJ, deu-se o inverso. Eu já tinha publicado alguns livros de poesia e, com as aulas, parei de escrever poemas por sete anos. Tanto as aulas quanto o pensamento crítico e teórico me chamavam muito. Foi quando descobri que, para minha felicidade, se antes eu levava o leitor de filosofia para o poeta, eu deveria então levar o poeta ao ensaísta. Depois, voltei a escrever poesia e também ensaios. Tudo que busquei em minha vida foi marcar uma posição de desguarnecer essas fronteiras entre poesia e filosofia, entre poesia e crítica, entre poesia e teoria. No fim de 2020, fiz meu concurso para professor titular, defendendo uma tese inédita intitulada Espantografias: entre poesia, filosofia e política, que deve ser publicada ainda no primeiro semestre deste ano, pela editora C14, do querido Piero Eyben. Tais desguarnecimentos de fronteiras fazem uma questão e tentativas de realização que atravessam toda minha trajetória e acho que, em tal tese, consegui finalmente tocar num ponto importantíssimo para mim, indo diretamente a ele.

No vidas rasteiras, há o “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, em 21 partes, que tentar lidar com a pandemia, com o governo Bolsonaro e com o entrelaçamento de ambos. Na ocasião estava lendo tudo que encontrava sobre esses assuntos; nada mais normal, portanto, que lesse logo que saíram os textos de Butler, Zizek, Agamben, Mbembe e muitos outros e outras, mencionados ou não. A parte em diálogo com o Agamben foi de grande importância para mim e, acredito, para o poema, tentando devolver ao filósofo italiano algumas perguntas, desde o que acontece no Brasil, sobre posições no modo de ele pensar a pandemia nesses textos recentes que veio publicando. Ler Agamben desde o Brasil, desde uma necrocracia explítica que nos envia às aglomerações, usando a presidência para propaganda negacionista, boicote a toda e qualquer possibilidade mínima de saúde e medidas favoráveis pela contaminação em massa do vírus — um genocídio literal, sobretudo aos mais vulneráveis, indígenas, quilombolas, negros e pobres em geral. Tal necrocracia fascista fora anunciada por Bolsonaro desde muito antes das eleições, sendo imperdoável o golpe em Dilma, sendo imperdoável o papel de Sérgio Moro, Dallagnol e da Lava-Jato, sendo imperdoável o papel do Congresso, sendo imperdoável o papel dos militares, sendo imperdoável o papel do TRE, sendo imperdoável o papel do STF, sendo imperdoável o papel da FIESP e de empresários, sendo imperdoável o papel da grande mídia e, finalmente, apesar de movidos por essas forças que alavancaram o pior do Brasil, sendo imperdoável quem votou em Bolsonaro. São imperdoáveis todos que, direta ou indiretamente, conspiraram para que Bolsonaro chegasse ao governo. Que, com o tempo, de diversos modos, eles sejam responsabilizados por isso. Voltando ao poema, cheguei a mandar a parte em diálogo com Agamben e mesmo todo o poema por email para ele, mas, dessa vez, ele não me respondeu. Num país governado por Bolsonaro, ficam algumas perguntas para Giorgio Agamben, que, como todos sabem pelos textos que escrevi, tanto admiro.

SANDRO ADRIANO — Escrito entre a semana anterior ao segundo turno das eleições de 2018 e 11 de maio de 2020, o “Poema para a catástrofe do nosso tempo” apresenta momentos que podem ser vistos como um manifesto otimista nesse tempo crucial da pandemia que assola o mundo e que no Brasil já atinge mais de duzentos e cinquenta mil mortos. A poesia como “nossa revolta convulsiva”, a poesia como testemunho e memória. Comente um pouco mais sobre isso e o verdadeiro vaticínio dos versos “Um país que elegeu/ esse presidente é de todo modo/um país doente, um país/ que produziu a mais letal/das doenças terminais”.

ALBERTO PUCHEU — Quanto a manifesto, pode ser visto assim, sim, e eu gosto disso, mas não consigo ver otimismo nenhum no “Poema para a catástrofe do nosso tempo”. O começo e o refrão dele é: “Amanhã não será um dia melhor/ do que hoje, que não é um dia/ melhor do que ontem”. Na penúltima página, se poderia ter uma esperança mínima, ela dura apenas, como dito no verso imediatamente abaixo da passagem que você citou, “uma tarde”, e, logo depois, o poema termina com uma “certeza”, a “certeza” de seu começo e refrão: “tenhamos a certeza/ de que amanhã não será/ um dia melhor do que hoje,/ que não é um dia/ melhor do que ontem”. Contrariamente a alguns conhecidos que, na época, ainda gostavam da Marina e minimizavam o golpe dizendo que “Dilma e Temer eram a mesma coisa”, desde o golpe em Dilma, eu tinha certeza de que não dava para ter qualquer esperança a curto nem a médio prazo. O golpe foi constituído pelos maiores poderes do país e eles não iriam depois entregar tudo de mão beijada. Acho, inclusive, muito difícil que abram mão do governo nas eleições de 2022; ou seja, acredito que elas serão roubadas ou que haverá um golpe explicitamente militar, miliciano, policialesco. É desolador que tenhamos de passar por tudo que estamos passando. Como digo no poema, não vivemos uma tragédia (Bolsonaro não tem, nem de longe, menor pingo de relação com Édipo, por exemplo), vivemos o horror. Não consigo ver qualquer esperança em um poema, cuja parte inicial, escrita antes do segundo turno de 2018[3], começa assim:

Amanhã não será um dia melhor

do que hoje, que não é um dia

melhor do que ontem. Há um

sentimento fúnebre no ar,

de quem tem vivenciado

uma morte após a outra,

de quem tem vivenciado,

antecipadamente, mais uma

morte, a última delas, a morte

após a própria morte, a morte

da qual não se tem retorno,

a morte da qual os mortos

não voltam dela para a vida,

a morte a que apenas os vivos

se encaminham para ela

sem jamais poder voltar,

a morte da qual não se tem

poemas para se fazer,

não a morte simbólica,

mas a outra, a real,

a experiência final da morte

em vida, da qual sobrevivemos,

se tanto, ainda que neste mundo,

enquanto fantasmas desossados,

descarnados, desfigurados,

que berram na tentativa de evitar

a morte e de evitar, a todo custo,

a morte em vida. Berramos em vão.

Não assustamos mais ninguém

com nossos berros. São eles, antes,

os inassustáveis, que nos assustam.

[…]

Mas isso não é nenhum vaticínio. Do mesmo modo que Bolsonaro não tem nada a ver com Édipo, por outros motivos — faço questão de dizer –, eu não tenho nada a ver com Tirésias. Era apenas uma questão de escutar o que Bolsonaro vinha desde há muito falando e do que disse no dia — no dia em que o pior do Brasil foi transmitido pela televisão com toda espetacularização possível para tirar Dilma e o PT do governo com aprovação popular — da votação pelo impeachment. Bastava ver. Bastava ver e ouvir. Bastava ver ou ouvir. Bastava ver o óbvio de quem mandou matar Marielle. Bastava olhar para a cara daquela família e ver e ouvi-los. Bastava ver e ouvir seu vice, ainda candidato, falando que eles, do exército, eram os “profissionais da violência”, o que sempre soubemos aliás, e falando abertamente na possibilidade de autogolpe antes mesmo de ser eleito. Bastava ouvir o que aquela família e aquelas pessoas falavam e defendiam. Mas, consciente ou inconscientemente, muitas pessoas foram levadas a querer aquilo mesmo, muitas pessoas queriam aquilo mesmo. É preciso ser claro e, por isso, vou repetir: Bolsonaro, seus filhos, seus ministros, Sérgio Moro, Dallagnol, a Lava-Jato, os militares, o Congresso, o Supremo, o TRE, os empresários da FIESP e outros, a Globo, a Folha de São Paulo, o Estadão, a grande mídia em geral e os eleitores de Bolsonaro trazem o sangue de todos os nossos mortos nas mãos. E, de novo, isso não é uma tragédia, nem, claro, um filme de terror. Isso é o horror mesmo, em vida real.

SANDRO ADRIANO — O poema em off foi escrito com poetisa Danielle Magalhães. Há um verso que diz “no poema gesto de amor”. Essencialmente a poesia é “lírica”, portanto, pessoal e intransferível. Como é escrever um poema a quatro mãos, corações, existências?

ALBERTO PUCHEU — O fato de a poesia ser lírica não me parece dizer que ela seja pessoal e intransferível. Fosse assim, não teriam leitores de poesia. Entendo a poesia como pessoal, impessoal e transferível. Ela se transfere de uma pessoa para a outra. Talvez a poesia não seja transmissível, ou talvez a poesia transmita o intransmissível, mas transferível ela me parece ser. Havendo transferência, há amor e, no amor dessa transferência, ela se recria. De fato, foi minha única experiência de fazer um poema, que foi publicado, com alguém. Todo o processo é uma história muito longa e muito intensa. Um dia contarei essa história, de preferência, de viva voz. Vim respondendo suas perguntas fora da ordem; essa ficou, propositalmente, para o fim. Nas respostas nada ordenadas que dou às suas perguntas, estou agora respondendo essa, a sétima, enquanto a última. No modo contracronológico que, por algum motivo, se colocou para mim, que fui fazendo dessa maneira, a pergunta 7 vem depois da 15. Para mim, a pergunta 7 acabou sendo a 15; e a pergunta 15 nem me lembro mais em que lugar estaria na minha contracronologia, na minha contranumeração. Há dois dias respondendo suas excelentes perguntas, estou exausto. E, para responder a essa pergunta, eu teria de ter todo um novo fôlego. Um dia, responderei a essa pergunta, um dia talvez ela venha como a pergunta número 1, não importando a numeração em que ela aparecer.

SANDRO ADRIANO — vidas rasteiras é uma obra que apresenta uma configuração interartística em que as imagens funcionam como dispositivos de suplementaridade aos poemas. No último poema da obra, poema para a catástrofe do nosso tempo, as imagens de domínio público são recuperadas tanto da história quanto do fotojornalismo, passando pelo même. São imagens cujo conteúdo transita do trágico (entre outras, a prisão da ex-presidenta Dilma Rousseff, o flagrante de uma cena de um leito de hospital, em referência às internações por Covid-19, a figura do torturador Ustra e o même do Bolsonaro como uma figura diabólica, que circula pelas redes sociais). Poderia comentar sobre a relação entre poesia e imagem, especialmente neste livro, os efeitos de sentido?

ALBERTO PUCHEU — Daysi Bregantini, dona da Revista Cult e da Editora Cult, que me deu a imensa alegria de seu convite para publicar o livro pela editora (saliento o fato de ser o segundo livro da editora e o primeiro de poesia), conhece tudo do campo de edições e publicações. As revistas Cult Antologia Poética, da qual tive a alegria de ser o curador do primeiro número, são maravilhosas, em todos os sentidos. Daysi convidou o Fernando Saraiva, que é um designer maravilhoso, para fazer toda a parte visual da revista, agora, em três números publicados, cada um mais lindo do que o outro. Ela o chamou para fazer também o meu livro. Foi dele a ideia e foi ele quem fez aquelas fotomontagens que separam as partes do livro. Toda a concepção material e visual do livro, que ficou lindo, é dele. Daysi chamou ainda o Marcelo Nocceli para supervisionar toda parte da impressão. Como está vendo, o cuidado com o livro foi extremo, adicionando a ele muitos elementos, como esses que você agora traz à tona. E ainda convidei a Carla Rodrigues, filósofa e querida amiga, para fazer a orelha, que ficou excelente também, conseguindo tocar com força no ponto em tão pouco espaço.

Em meu processo de criação, penso que essa parte interartística comparece repetidamente, nas fotografias das frases de rua, que geraram uma exposição de fotografias, uma instalação na Oi Futuro e com as quais termino ainda um ensaio escrito, os vídeos que fiz com poemas e filmagens ou imagens apropriadas, os filmes com outros poetas…

SANDRO ADRIANOLogo nos primeiros versos de poema para a catástrofe do nosso tempo o eu poético fala sobre a questão do luto impossível nesse momento de pandemia. A poesia, nesse tomo elegíaco, seria um local de fala e escuta desse luto?

ALBERTO PUCHEU — Fazer o luto sobretudo por aqueles por quem o luto não pode ser feito me parece ser uma direção da poesia hoje. Há um massacre da população, principalmente das pessoas em situação de vulnerabilidade maior, realizado pelas instituições do Brasil de hoje, a começar pela presidência da república e seus ministérios. Declarada e incansavelmente, o presidente debocha da possibilidade da dor pelos mortos, debocha da possibilidade do luto, e segue atuando com sua máquina mortífera geradora de centenas de milhares de mortos. Ir na direção da tentativa de fazer o luto por quem nem tem a chance de ter seu luto feito é uma das tarefas da poesia hoje.

O vínculo entre poesia e luto existe desde sempre na tradição ocidental. O exemplo clássico mais renomado é, sem dúvidas, Antígona, entregando sua vida para fazer o luto, proibido pelo tirano Creonte, de seu irmão. Antes de Sófocles, a Ilíada, que, tal qual a conhecemos, termina com Príamo indo resgatar seu filho assassinado e trucidado por Aquiles, ou seja, a Ilíada termina com a necessidade imperiosa do luto por Heitor; e há o luto monumental pela morte de Pátroclo, feito por um Aquiles a princípio destrambelhado, estendido [o luto] a todos os gregos em combate e, em certo sentido, a todos no campo de batalha. Lembro que tanto Antígona quanto Aquiles são “crus”, trazem uma dimensão não civilizada, selvagem, vivendo seus lutos nos extremos. Em Eurípedes, na Medeia, há, entretanto, uma passagem muito curiosa, em que, na tradução do Trajano Vieira, uma personagem, a nutriz, diz: “Não houve musa que desvendasse/ em cantos pluricordes/ a arte de estancar o luto lúgubre/ dizimador de moradias/ com o revés atroz de Tânatos”. Nessa passagem, está sendo dito que, se a poesia mélica (lírica) é boa para festas e para o prazer, ela é inútil à dor do luto. Nesse caso, haveria uma impossibilidade de a poesia, apesar de se colocar também nessa direção, realizar o luto amenizando a devastação causada pela morte de uma pessoa amada.

As condições atuais e a avalanche sem pausa do que sofremos são tão terríveis que certamente não conseguimos fazer os lutos como deveríamos fazer. Nem temos tempo para tantos lutos ininterruptos. Apesar disso, precisamos ir, sim, na direção da realização do luto, sobretudo, do luto por aqueles que não são contados, que não são lembrados, que permanecem numa morte também indigente, que podem facilmente morrer sem que suas mortes sejam memorizáveis nem computáveis, na falsa democracia que vivemos. Entre Homero-Sófocles e a passagem da nutriz em Eurípides, hoje podemos pensar que, na possibilidade do luto, talvez haja, nele, uma dimensão sempre impossível. Mas o que é a poesia senão a lida com o possível e o impossível?

Antes de ontem, terminei esse poema:

NÃO ANDAMOS SOZINHOS

Quando eu piso andando sobre a terra,

não é apenas o meu rastro que fica

marcado, mas o encontro do meu pé

com o movimento que a terra realiza

ao receber o meu pisar. Esse rastro,

que não é só meu, é rastro da terra

a se acomodar à forma do meu peso

contra o chão. Ninguém anda sozinho,

isso é certo. Andamos com a terra,

com o vento, com a chuva, com o sol,

com os bichos, com os fantasmas,

apenas não andamos sozinhos.

Não andamos sozinhos, isso é bem certo,

andamos com mil e novecentos mortos

nos agarrando, querendo nos levar,

andamos com duzentos e sessenta mil

mortos nos agarrando, querendo nos levar,

andamos com um milhão e seiscentos mil

mortos nos agarrando, querendo nos levar,

andamos com todos esses mortos, mais

ou menos próximos, com seus corpos

ainda quentes querendo nos levar. Somos

nós os rastros e os fantasmas desses mortos,

cujos corpos, insistentemente, teimam

em nos pisar, em fazer, de nossos corpos,

a terra em que, escavando, querem se sepultar.

SANDRO ADRIANO — Você foi responsável pelo resgate e projeção de importantes vozes poéticas na literatura brasileira, entre elas Orides Fontela e, mais recentemente, Carlos de Assumpção, com quem você produziu um documentário e entrevista. Você poderia falar sobretudo a respeito da recepção crítica de ambos? E, como professor e crítico, refletir sobre o lugar da crítica de poesia no Brasil?

No que diz respeito a Orides Fontela, não foi, de modo algum, um resgate. Dos anos 1980 para os 1990, Orides Fontela era uma poeta que publicava seus livros, uma poeta lida por poetas, por leitores de poesia e pela crítica, conhecida por poetas e intelectuais muito respeitados de sua época. Ela havia estudado na USP e importantes intelectuais da universidade eram seus amigos e a admiravam. Trevo foi publicado em 1988 pela Claro Enigma, uma coleção importantíssima da editora Duas Cidades. O que aconteceu é que, por volta de 1996 ou 1997, eu tive a ideia de organizar um livro com textos de poetas que tinham formação em filosofia, o Poesia (e) filosofia; por poetas-filósofos em atuação no Brasil, saído em 1997, pela então Sette Letras (livro que acabou sendo reeditado, em 2018, pela editora Moinhos). Para esse livro, convidei Adélia Prado, Antonio Cicero, Rubens Rodrigues Torres Filho e, entre outros, Orides Fontela. Para chegar a ela, me deram o contato de um advogado — lembremos que não tinha internet na ocasião. Ele falou com ela e me passou o endereço dela para eu escrever diretamente a ela. Ela foi tão gentil, amorosa, afetuosa… E estava empolgadíssima com o livro. Trocamos cartas, inclusive, quando ela já estava no hospital. A nota bem triste é que ela morreu no dia exato em que o livro ficou pronto, não o tendo visto. Fiquei muito triste com isso. Logo ela, que estava tão empolgada com o livro. Ela fez um texto maravilhoso, doído, intenso, rascante, que eu amei. Recentemente, mais de duas décadas depois, acabei escrevendo sobre um detalhe desse texto dela para o colóquio na PUC-R.J. que tinha Orides como tema, organizado pela Patrícia Lavelle, Paulo Henriques Britto, Pedro Duarte e Henrique Estrada. O livro do evento, Poesia e Filosofia: Homenagem a Orides Fontela, foi publicado pela Relicário.

Com Carlos de Assumpção foi diferente. Estranhamente, eu (nem inúmeros poetas, professores e críticos) não conhecia sua poesia nem jamais tinha escutado falar dele. Cheguei ao poema “Protesto” quando, convidado por Daysi Bregantini, pesquisava para organizar a Cult Antologia Poética, número 1. Achei aquilo uma maravilha, um dos mais importantes poemas brasileiros de todos os tempos, e achei assombroso eu não o conhecer. No mesmo dia, postei o vídeo dele recitando maravilhosamente esse maravilhoso poema. As pessoas, que em grande parte não o conheciam, amaram. Tentei achar seus livros, muito difíceis de serem encontrados. Achei um. Entrei em contato com ele, que, com seus 92 anos, estava lúcido demais, com uma inteligência maravilhosa e extremamente amoroso. Um mês depois, fui para Franca fazer um filme com ele. Graças ao Cavi Borges, o filme teve estreia numa sala pequena do Estação Botafogo, depois o passamos na Casa de Cultura Abdias do Nascimento, em Franca, para o poeta, seus amigos e admiradores, com auditório lotado e muitas homenagens da cidade a ele. O filme Carlos de Assumpção: Protesto, disponível no meu canal do Youtube, foi projetado em universidades, escolas, centros culturais etc. de diversos lugares do Brasil. Ali por agosto de 2020, a Folha de São Paulo me pediu um texto sobre Manoel de Barros, sobre quem tinha escrito várias coisas, e sugeri, no lugar do Manoel de Barros, escrever sobre Carlos de Assumpção, explicando quem ele era. Aceitaram. Escrevi, me deram um bom espaço, e o texto, para os meus padrões, foi muito lido, muito mesmo. No dia seguinte à publicação da Folha, duas grandes editoras entraram em contato comigo, querendo publicar a poesia reunida dele. Eu acabei organizando Não pararei de gritar para a Companhia das Letras. Publiquei ainda uma entrevista com ele na Cult. Depois, o Heraldo Pereira, que havia lido meu texto na Folha, fez quatro entradas de uns 7 minutos cada uma com o poeta no Jornal das Dez da Globonews, terminando com um programa de uma hora com Carlos de Assumpção no mesmo canal. Com o tempo, descobri que “Protesto” era um poema fundamental para o movimento negro, para poetas negros, para críticos que trabalham com poesia afrodescendente. As pessoas do movimento negro ligadas à poesia o conheciam. É um caso típico do preconceito e da cegueira da história da crítica hegemônica, universitária, de jornal, dos editores, das premiações etc. Carlos de Assumpção é um de nossos maiores poetas de todos os tempos e passou desapercebido da maioria de nós todo esse tempo. Felizmente, o movimento negro da poesia, da literatura e da política de modo geral manteve a chama de Carlos de Assumpção acesa. Ele é mencionado em antologias da poesia negra, em textos críticos ligados à poesia e à literatura afrodescendente, mas não há um ensaio de fôlego só sobre sua poesia. Eu fiz um livro sobre ele que sairia em maio de 2020, pela Cult, mas veio a pandemia e o cancelou. Agora, a Cult aguarda um momento para publicá-lo. Mas o livro existe, só sobre ele, todo a partir dele. E terá uma surpresa, algo que acho que quase ninguém, mesmo estudiosos, sabe que existe. Fica o suspense, a surpresa.

SANDRO ADRIANO — Em Pelo colorido, para além do cinzento (a literatura e seus entorno inventivos) (2007), na condição de poeta-crítico, você reivindica — e exerce — uma “miscigenação entre o poético e a teoria literária, entre o poético e a crítica, entre o poético e o filosófico” (p.12). Parece reverberar um pouco da visão de Northrop Frye, em seu Anatomia da crítica (1957/1973), quando o autor afirma que “a crítica evidentemente é também uma espécie de arte” (p.11). Comente um pouco sobre isso, e como você avalia esse fenômeno contemporâneo de produção em série de artigos científicos, sua linguagem, alcance, “originalidade”, entre outros elementos.

ALBERTO PUCHEU — Muito do que sempre quis na vida de escrita foi me situar nessa miscigenação, experimentando seus vários graus possíveis. Isso tanto nos ensaios — em seus temas e modos de escrita — quanto nos poemas. Isso também nos textos mais indiscerníveis, que transitam de uns a outros. Tempos atrás, houve um momento em que decidi ser isso o que eu tentaria demarcar na possível intervenção que eu tentaria fazer. Eu jamais conseguiria ser um filósofo, nos sentidos estritos desse termo. Mas na crítica eu acreditei que poderia intervir, ainda que minimamente. E foi nessa direção que, explicitando o tema, escrevi, por exemplo, os textos sobre Platão, os textos sobre crítica e tantos outros. E foi nessa direção que ainda ano passado defendi a Tese para professor titular, que será publicada esse ano: Espantografias: entre poesia, filosofia e política.

Quanto ao que você chama de “produção em série” de artigos acadêmicos, acho que temos de tomar vários cuidados. O primeiro cuidado é o que você literalmente disse: o cuidado contra o fato de a produção acadêmica poder ser, de fato, “em série”, como a de produtos industrializados, sem qualquer desejo, sem elaboração, sem pensamento, sem busca por uma escrita e criação; sendo aquelas coisas meramente repetivivas do já estabelecido ou consolidado — existe muito disso, de fato, até onde menos se espera. O segundo cuidado é não cair, como muitas vezes algumas pessoas, até legais, caem, em um preconceito tolo contra quem produz o que chamam, pejorativamente, por “muito”. E nesse grupo tem, inclusive, pessoas que admiram filósofos escritores como, entre outros, para não falar dos mais antigos, Agamben, Derrida, Deleuze, Foucault, Heidegger, Lacan e Zizek, esquecendo-se de que eles escreveram e escrevem (os vivos), assim como publicaram e publicam, “muito”. Ou não? Alguém diria que esses filósofos escreveram e escrevem textos de “produção em série”, no sentido dado em sua pergunta? Talvez os colegas de departamento deles tenham pensado ou dito isso (lembro-me que Agamben contou para mim e para o meu grande amigo Cláudio Oliveira, em uma verdadeira transmissão oral de anedotas, uma que Heidegger contou no seminário de Thor, dizendo que Deus veio e inventou o professor, aí, veio o diabo e inventou o colega de Departamento). Mesmo que haja poucos agambens, deleuzes etc., escrever e publicar o que chamam de “muito” não é obrigatoriamente algo que vá contra a qualidade do que se escreve e publica. O terceiro cuidado parece-me ser o de lembrarmos que muitos de nós somos funcionários públicos, tendo de, em algum grau, devolver, além das aulas, nossas pesquisas, que são pagas com dinheiro público, ao que é, de fato, público, a uma dimensão pública da pesquisa, do pensamento, da criação. Vou dizer uma coisa que muita gente não vai gostar, se é que estão gostando de alguma coisa nessa parte da resposta: fora a concorrência por dinheiros, bolsas, auxílios, notas de PPg(s) etc. (que muitas vezes chegam a ações execráveis, como já testemunhei mesmo em avaliações na CAPES), não acho que o que a CAPES exigia como produção de um professor de pós-graduação era “produção em série”, nem “muita”. E há, é claro, uma demanda, extremamente necessária, pelo qualitativo (o que quer que isso queira dizer) sobre o quantitativo — como implementar isso é uma das questões. Até certo ponto, eu gosto dessa proliferação de livros e periódicos acadêmicos como maneiras de tornar pública a pesquisa; mas também detesto o declínio da figura do editor das revistas acadêmicas, que dava alguma unidade e rosto ao número que organizava, em nome de pareceres anônimos, que avaliam um texto sem os pareceristas fazerem a mínima ideia da existência de qualquer outro ensaio enviado para o mesmo número, apenas para dar vazão à produção existente. Acho igualmente um atentado a nossa área a sobrevalorização dos artigos em periódicos em detrimento do livro.

Houve várias gerações de professores do passado que, maravilhosas, escreveram muito pouco. Apesar da excelência do saber de muitos professores, não havia uma tradição forte de escrita acadêmica no Brasil, tendo havido mesmo uma certa inibição com a escrita, o que acho uma pena. Tive vários professores e professoras que considero pensadores e pensadoras muito mais interessantes do que muitos europeus mas que pouco escreveram. Isso é algo que tem sido alterado. Entendo igualmente que haja pessoas que primam mais pelo suposto saber do que pela escrita, e outras que se entregam mais à escrita do que à exclusividade do saber. É claro que algum tipo de equilíbrio dentro disso tem de ser encontrado.

SANDRO ADRIANO — Em um ensaio sobre a obra do poeta Caio Meira, você afirma que “Sim, o poeta é insensato. Ele não se livra de sua infância”. Poderia comentar em que medida a memória e os rastros espectrais reverberam em sua poesia?

O poeta como “insensato” é uma colocação que já vem do Íon, do Platão. Lembro-me bem do meu ensaio sobre o Caio, mas não me lembro do contexto em que surge essa frase. Em todo caso, insensato, sem senso, sem sentido. O poeta pode fazer um poema sem saber exatamente do poema. Como começar um poema?, é uma das perguntas mais misteriosas para quem é poeta, pois o começo de um poema, na maior parte das vezes, escapa à compreensão, ao saber, ao senso de quem é poeta. Mesmo sem saber o sentido, o poeta escreve, como se lhe interessasse, antes de tudo, a passagem de sentido, a possibilidade da criação de sentido, a abertura do sentido. Sem essa abertura, sem essa passagem, sem essa possibilidade não há poesia, ou pode até haver, mas tomará a abertura como paradigma, mesmo que a ser burlado. O sentido também é, claro, necessário na construção de o que o poeta quer dizer, de o que o poeta pode dizer, de o que o poeta diz, o sentido é o salto dado por quem é poeta, a ética, também necessária, da diferença de um poeta ou outro, de uma poeta ou outra, o abismo no qual, em sua aposta, ele ou ela se joga.

SANDRO ADRIANO — Você foi organizador, junto de Caio Meira, do Guia conciso de autores brasileiros (2002), uma publicação relevante, dirigida sobretudo ao mundo editorial estrangeiro. Nele comparecem nomes como Carolina Maria de Jesus, que, como sabemos, foi uma escritora alijada do cânone e da crítica literária, em função de sua condição social, étnica e de gênero. Poderia comentar sobre os critérios para a seleção dos escritores e escritoras? E, passados vinte anos, como essa obra impactou na projeção desse catálogo no exterior?

SANDRO ADRIANO — Acho que foi em meados de 2001, meu amigo e grande poeta Leonardo Fróes trabalhava na Biblioteca Nacional, depois de ter sido transferido da FUNARTE para lá. Na época, nos encontrávamos sempre depois do trabalho dele para tomarmos uns chopes e conversarmos. Ele recebeu do Elmer Corrêa Barbosa a incumbência de arranjar quem faria o Guia. Como éramos amigos e eu estava sem emprego fixo, ele me perguntou se eu queria fazer e eu disse claro que sim. Além do mais, para mim, na época, era muito bem pago. O pagamento era por verbete e era uma enorme quantidade de verbetes. A lista veio pronta de cima… Até onde soube e me lembro, quem a fez foi Eduardo Portella, então presidente da Biblioteca Nacional. Na verdade, eu não fui o organizador de modo algum. Eu fui o executor, contratado. Mesmo o modelo de uma pequeníssima resenha, umas duas citações do autor ou da autora e uma ou duas — nem me lembro mais — citações sobre cada um ou cada uma, vieram do Elmer, como o modelo a ser cumprido. O que fiz foi unificar o tamanho dos textos que ia escrevendo, se não me engano, para 13 linhas, o que acabou sendo uma curtição, até na correria. Além disso, o próprio Leonardo Fróes não estava na lista e, por minha grande admiração pela poesia dele, fiz questão de incluí-lo, sem pedir permissão a ninguém e sem que ninguém soubesse. Leonardo é o intruso que deu certo no Guia, o que fiz penetrar na festa sem que nem ele soubesse disso. Para fazer o Guia, que tinha prazo, eu estava quase morando na biblioteca do Banco do Brasil, na biblioteca da Casa Rui Barbosa e, quando necessário, na Biblioteca Nacional. Eu conseguia fazer uns três verbetes por dia. Ao fim, o prazo estava chegando, e convidei meu grande amigo e excelente poeta Caio Meira para me ajudar a terminar. Ele fez uns 20 verbetes, algo assim, não me lembro bem. Talvez um pouco mais. Lembro-me que a ideia do Guia, conforme o próprio Elmer me falara, era facilitar a comercialização e divulgação de escritores brasileiros nas feiras internacionais, mas não faço ideia de qual foi o efeito dele. Como disse, fui só o contratado para realizá-lo, para fazer os textos. E, apesar do trabalho, me diverti muito fazendo-o. Assim como fast food (que detesto, aliás), era meio fast critic, super-hiper-fast-critic.

SANDRO ADRIANO — Você é um poeta bastante ativo nas redes sociais. Que papel elas têm na irradiação da poesia e do público leitor?

ALBERTO PUCHEU — Se você é um leitor assíduo de poesia contemporânea, você sabe que o tempo do livro é diferente do tempo das redes. São duas temporalidades distintas. O livro é um conjunto estudado, pensado, criado com calma. As redes são lugares em que poetas vão experimentando o que estão fazendo, lugares de poemas soltos, que o leitor pode até ir juntando, como faço algumas vezes. Um grande número de poetas posta poemas nas redes muito antes de publicar o livro em que tais poemas sairão. Às vezes, nem haverá o livro, apenas os poemas, soltos. São muitos os exemplos. Anos atrás, eu e Tatiana Pequeno participamos de um mesmo evento. Ela, que já tinha publicado dois livros, leu então um poema incrível. Depois, foi postando vários poemas nas redes, um mais potente do que o outro. Eu ia lendo e pensando: nossa, tem alguma coisa acontecendo ali! Esses poemas não estavam ainda em livro nenhum. Bruna Mitrano já tinha publicado o Não. Depois, começou a postar uns poemas impressionantes. Danielle Magalhães já tinha publicado Quando o céu cair e vinha escrevendo e postando poemas impressionantes. Três dos filmes que fiz, foram com elas, com esses poemas que eu ia lendo no Facebook, então, inéditos em livros. Os filmes anteciparam os livros; depois do filme, Tatiana Pequeno publicou Onde estão as bombas; Danielle Magalhães publicará por volta de maio seu novo livro, pela 7Letras; não sei se Bruna está para publicar algum livro novo. Lia a excelente Mar Becker, que nem conhecia, pelo Facebook antes de ela lançar seu ótimo livro. Conheci a poesia de Aline Bei pelas redes. Li nas redes um poema que me impressionou muito de Iasypitã Potiguara, de quem nunca ouvira falar. Diariamente leio muitos poemas nas redes, de poetas que conheço ou não. Moisés Alves vem postando poemas belíssimos nas redes, inéditos em livros. Roberto Corrêa dos Santos quase todos os dias posta uns poemas que impressionam. Se você acompanha a poesia contemporânea, se não a acompanhar pelas redes, vai perder muita coisa, isso, claro, se você quiser participar dessa temporalidade mais rápida, desse momento em que poetas fazem o poema e já vão publicizando-os. Gosto dessa coisa de ver o poema nascendo ali, como se fosse ao estúdio de um artista. Se não fosse o Youtube, eu talvez não tivesse vindo a conhecer a poesia de Carlos de Assumpção e, se não fosse o Facebook, talvez eu não tivesse conseguido contatá-lo.

Como poeta, acho que as redes são canais de divulgação que temos, de diálogos com quem vai escrevendo e com quem vai lendo os poemas que vamos postando ou os livros que vamos publicando. Mesmo para vender livros, as redes têm sido um ponto de ajuda. Gosto disso, de fazer um poema agora e postá-lo, no calor da hora, quando acho que ele está pronto. Muitas vezes, mesmo depois de postar, ainda sigo mexendo no poema na postagem, ou mesmo depois. Muitas vezes quando fazemos um poema, não temos muita noção dele. Nós, poetas, com os livros, quase nunca vemos a reação dos leitores; então, as redes acabam funcionando também como um certo termômetro da recepção do que vamos postando. Muitos poemas meus nasceram como postagens, às vezes, os poemas nascem como postagem ou como reunião de postagens. Muitos anos atrás, criei um termo que chamei de “postema”: poema + postagem + pós-poema.

[1] Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Literatura Brasileira e Teoria literária na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), campus Campo Mourão, Paraná, Brasil.

[2] Grafamos o referido título da obra em minúsculas, observando a escolha estético do autor.

[3] Revelo que o que acabou sendo a primeira e segunda parte do poema compunham o poema único escrito antes do segundo turno de 2018.

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