Al-Mu ‘Tamid: o rei-poeta de Sevilha
Foi no ano de 1031 que caiu o Califado de Córdoba e o Al-Andaluz fragmentou-se em reinos independentes, chamados Reinos de Taifas (a origem encontra-se na palavra árabe Muluk At-Tawaif). Na parte do Sul do território que é hoje português, o Garb Al-Andaluz, ou ocidente de Al-Andaluz, constituíram-se quatro reinos de taifas: um grande reino na zona mais a norte cuja capital era Batalyaws (Badajoz), um reino que compreendia a região do Baixo Alentejo com capital em Mârtula (Mértola) e dois reinos no atual Algarve, nomeadamente os reinos de Xilb (Silves) e Xantamarya Ibn Harun (Faro).
Exactamente nesta época nasceu uma cultura Hispano-Árabe, nomeadamente na poesia medieval, fruto de uma miscigenação de elementos étnicos árabes, berberes, judaicos, hispano-romanos e hispano-godos. No caso particular do Sul de Portugal, podemos dizer que essa poesia é actualmente designada como Poesia Luso-Árabe e foram vários os autores que nos deixaram o seu legado. Porém, entre esses autores, ficaram como os casos mais representativos desse género poético Al-Mu‘tamid e Ibn ‘Amar, cuja amizade viria a tornar-se inseparável, durante a sua adolescência.
Al-Muʿtamid ibn ʿAbbād nasceu em Beja, provavelmente de uma berbere bejense, em 1040, onde viveu até aos 11 anos de idade. Era filho de ‘Abbad Al-Mu‘tadid, rei da taifa de Sevilha, um homem muito ambicioso e com fama de guerreiro cruel e sanguinário. Conquistando vários reinos vizinhos, Al-Mu‘tadid contribuiu para criar o reino mais poderoso do Al-Andaluz, designado por Reino Abádida, o qual ia desde o Sul de Portugal até ao estreito de Gibraltar. No entanto, seria, entre todas as conquistas, a de Silves que maiores dificuldades lhe causou. Apenas ao fim de 10 anos de lutas é que, finalmente, Al-Mu‘tadid se apodera da cidade. É justamente a partir dos 11 anos que o pai chama o filho para junto de si e Al-Mu‘tamid participa com o pai nas várias campanhas contra Silves, onde inicia o seu governo, a partir de 1053.
Quando Al-Mu‘tamid chega a Silves, durante a sua adolescência, faz-se rodear de poetas e sábios do Al-Andaluz. Sensual, epicurista e amante do luxo, Al-Mu‘tamid entrega-se, desde muito jovem, a uma vida de excessos. São famosas as noites de Silves, no célebre Palácio das Varandas, que originaram os primeiros poemas de Al-Mu‘tamid, envolvido num ambiente de luxúria com o seu amigo predilecto Ibn ‘Ammar. O poema «Evocação de Silves» é um importante testemunho desse período. Desagradado com os rumores que ouvia sobre o comportamento do filho e sobre o que se passava em Silves, o seu pai ordena-lhe que regresse a Sevilha e desterra Ibn ‘Ammar para Saragoça. Todavia, aos vinte e nove anos de idade, Al-Mu‘tamid sucede ao seu pai e nomeia Ibn ‘Ammar governador de Silves. Pouco tempo depois, chama-o para junto de si em Sevilha, nomeando-o grão-vizir da sua cidade. Nesta altura, o reino de Al-Mu‘tamid era o mais florescente na cultura, em todo o Al-Andaluz e o rei, além de poeta, exerceu o mecenato de forma generosa.
A poesia de Al-Mu ‘tamid integra-se na poesia árabe, no estilo clássico da qasîda, e revela um perfeito domínio do idioma e de utilização de todas as suas potencialidades com mestria. Filho e neto de poetas, educado numa corte de intelectuais e de literatos, provavelmente do grande Ibn Zaîdun, o então jovem príncipe encontra cedo uma voz própria. A linguagem que usa é simples e directa, com a expressão exacta que se adequa à expressão dos sentimentos, afastando-se do mero jogo formal ou retórico da poesia. Pelo seu tom confessional e autêntico, os seus poemas constituem um espelho da sua própria vida e, se a sensualidade e o amor são temas tão fortes nas diversas fases da sua vida, no entanto, no final quase desaparece, valorizando uma dimensão mais espiritualizada e contemplativa da vida, em que a poesia é mais elegíaca.
Numa atmosfera turbulenta de avanços e recuos na guerra com os reis cristãos, aquele que era já um grande poeta e cuja vertente humanista e literária se sobrepunha à do rei guerreiro e político, viu-se forçado a tomar decisões para conservar o seu reinado. Ibn ‘Ammar, hábil diplomata e calculista era o seu conselheiro, mas acabou por traí-lo e foi preso e morto pelo próprio rei, ao sentir-se atraiçoado. Estes acontecimentos coincidem com a perda de poder de Al-Mu‘tamid, que procura chegar a um acordo com Afonso VI, mas não consegue. Os reinos muçulmanos, divididos e enfraquecidos, subsistem graças a vassalagens e tributos a Castela. Por outro lado, os reinos tinham os cofres de estado esgotados e exigiam uma carga tributária demasiado pesada para o seu povo. Face à ameaça de conquista por parte de Afonso VI, Al-Mu‘tamid pede auxílio ao rei almorávida Ibn Tashfîn, homem rude e inculto, que acabará, por sua vez, por traí-lo, aquando do terceiro apelo de Al-Mu‘tamid contra os reis cristãos, voltando-se contra ele.
Desesperado com a traição do rei almorávida que procurava conquistar Sevilha, o rei procura ainda, de forma infrutífera, a ajuda de Afonso VI, seu antigo aliado. Finalmente, após perder o combate contra os Almorávidas, que se assenhoreiam do Al-Andaluz, é feito prisioneiro e segue, com ‘Itimad e os seus filhos, para o exílio em Agmât, nos arredores de Marraquexe. Restam-lhe quatro anos de vida e, durante esse tempo, o rei exilado e vivendo num estado de penúria, acorrentado, dedica-se, mais do que nunca, à poesia e à reflexão. Após a morte da sua amada ’Itimad, Al-Mu‘tamid perde todo o seu alento e escreve, nas vésperas da sua morte, os versos que lhe servirão de epitáfio e que ornamentam a parede aos pés do seu túmulo.
A poesia de Al-Mu‘tamid e a sua personagem lendária têm inspirado muitos autores, intelectuais, artistas e músicos ao longo dos séculos e nas várias culturas do mundo. Entre eles, destacam-se Fernando Pessoa, bem como o intelectual e ativista andaluz Blas Infante Pérez, tendo ambos contribuído, na década de 1920, para a salvaguarda do legado cultural do próprio al-Muʿtamid. Mais tarde, estudiosos portugueses como Garcia Domingues, o historiador António Borges Coelho e Adalberto Alves investigaram a sua vida e traduziram a sua obra, trazendo à luz um dos maiores tesouros da nossa história da Andaluzia medieval.
A corte de Al-Mu‘tamid marca o esplendor de um período das Letras Peninsulares, tanto pelo número, quanto pela sua qualidade. Constituiu também uma época de profunda renovação cultural e poética, na qual o próprio rei participou ao cultivar o género poético muwashshaha, uma criação do génio literário andalusino que reflete o expoente de osmose civilizacional. Por outro lado, enquanto mecenas, protegeu o desenvolvimento das ciências, da filosofia e da música, contribuindo para uma época sem igual na história medieval da Península Ibérica.
Deixemos ressoar os versos de Al-Mu ’tamid:
Evocação de Silves
Saúda, por mim, Abu Bakr,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande quanto a minha.
Saúda o Palácio das Varandas,
da parte de quem nunca o esqueceu,
morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
Moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
Ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava…
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.
Tangia-me o alaúde
e eis que eu estremecia
como se estivesse ouvindo
tendões de colos cortados.
Mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.