Ainda sobre Paterson e a polêmica personagem Laura

Yasmin Nigri
Revista Caliban issn_0000311
5 min readJul 3, 2017

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Quando escrevi pela primeira vez sobre o filme Paterson (https://revistacaliban.net/paterson-o-triunfo-da-poesia-sobre-o-poema-cce07b46dd01) não me detive na personagem Laura, cheguei a pensar em escrever outro texto na sequência elogiando a personagem e todos os seus aspectos positivos. Não escrevi. Era uma tentativa de redimir o diretor pelo filme não passar no teste Bechdel, apesar de ter efetivamente amado a personagem sob diversos pontos. Pra quem não sabe, os critérios do teste Bechdel determinam que o filme deve conter no mínimo duas personagens femininas com nome, que essas personagens conversem entre si e que o assunto não seja homem.

Em seguida, choveu uma enxurrada de textos na internet criticando a construção da personagem. A princípio, tive muitas dificuldades em compreender essas críticas, li muitos textos falando que Laura retratava a solidão da mulher artista, a infantilização da mulher, entre outros aspectos, e me senti muito incomodada. Pela primeira vez ouvi falar no termo manic-pixie-dream girl. O termo consiste em classificar uma gama de personagens femininas no estilo Zooey Deschanel de ser: o combo mulher maníaca-encantadora-sonhadora. Fui tomada de assalto pela surpresa quando passei a tematizar a incidência desses três adjetivos em personagens femininas.

Eu havia me identificado inteiramente com Laura, se todas aquelas críticas estivessem corretas então elas só poderiam significar que eu mesma romantizava e me idealizava naquele lugar da manic-pixie-dream girl. Voltei ao meu caderno em busca de anotações que fiz sobre a personagem e encontrei bons argumentos.

As minhas primeiras impressões sobre Laura haviam sido a de uma mulher que se ocupa com as coisas à sua própria maneira, mas parei pra refletir e a relação que Laura mantém com os objetos não chega a ser uma relação profanadora no sentido que Agamben defende: a de uma ressignificação que escape ao uso cotidiano das coisas. Nas minhas anotações disse que à sua maneira, muito mais interessante a meu ver diga-se de passagem, Laura também lidava de modo poético com o mundo, imprimindo seu estilo nas paredes, móveis, quadros, cortina do banheiro, roupas e até mesmo na comida e na coleira do cachorro. Nesse sentido eu continuo achando Laura extremamente poética, mas compreendo quando a colocam nesse lugar doce e servil, de quem se ocupa apenas em embelezar as coisas. Toda a circunvisão de Laura, ou seja, sua casa, lugar de onde ela parece não sair muito, imprime seu estilo, personalidade e visão de mundo. Pra mim, isso era notoriamente uma qualidade, até perceber que tratavam, crítica e público, o caráter artístico de Laura como um mero capricho ou distração enquanto os de Paterson eram tidos como os de um autêntico artista.

Não só leram a personagem como uma manic-pixie-dream girl como rebaixaram seus talentos e qualidades a meros caprichos. Passei a notar também que tratavam Paterson como o marido condescendente, o herói da relação, aquele que cede aos prazeres e caprichos da mulher indecisa e inconstante que não sabe o que quer.

Eu havia deixado passar tudo isso. Lembrei de um dos meus episódios favoritos do filme, aquele em que Paterson conta ao amigo dono do bar não ter aderido ao uso do celular e nem pretender, o dono vira e pergunta algo como: “Mas o que a sua mulher pensa sobre isso? Ela não encrenca?”; Paterson responde: “Não. Ela me entende.”. Quando troquei a minha lente pela de outras mulheres incomodadas com a personagem passei a ler com outros olhos esse momento que considerei lindíssimo. Lembrei de todos os dias que Paterson saía pra beber e deixava Laura em casa. Lembrei do dia do acidente em que ele chegou tarde sem avisar. Lembrei que Laura jamais pareceu ansiosa, ressentida ou irritada.

Quando eu assisti pela primeira vez o filme vi Laura como alguém que não se irritava ou saía do tom por ter um universo interior absolutamente rico… e encantador. Depois de repensar o filme e a personagem, mediada pela reflexão de diversas mulheres, percebo a problemática envolta nesse tipo de construção. Pra mim bastou que ela vendesse todos os cup cakes na feira e oferecesse a Paterson um jantar seguido de um filme, mas não pensei que ela não havia recebido nenhuma ajuda ou apoio do parceiro, pelo contrário, eu via nessa autonomia do casal um ponto forte. Quando Paterson, levemente contrariado, apoia a compra do violão de Laura, porque um de seus sonhos era virar uma cantora country de sucesso, eu li como um gesto de confiança e admiração, e não condescendência. De modo geral, Laura é lida como a mulher dócil, ou minic-pixie-dream girl, como desejarem, que vive à sombra do marido, cuida, apoia e não oferece grandes perigos ou ameaças ao seu estilo de vida, mesmo que ainda não tenha se encontrado ou definido o que quer fazer da própria vida.

Existem sim dois modos possíveis de ler a personagem, um que a enaltece e outro que a enfraquece. Agora, saber que a indústria se vale de um determinado tipo de construção dentro de determinados estereótipos para que personagens mulheres sejam aceitas, saber que Laura, sob esse prima, se encaixa em todos os estereótipos, foi um baque. Percebi que tudo aquilo que eu considerava uma qualidade na personagem poderia facilmente recair nos estereótipos da mulher infantilizada, dócil, instável e incapaz. Tudo isso me fez questionar se o problema está em ser como Laura, uma figura com quem havia me identificado tanto, ou em como a sociedade lê Laura. Talvez uma mistura dos dois. Eu ainda me pego pensando se a personagem foi desumanizada, se Paterson pode ser lido como uma personagem que tem mais camadas e uma construção mais complexa. Todas essas questões são válidas.

Acredito que nenhuma das minhas amigas que problematizaram o filme tenham se desvencilhado da identificação com Laura. O problema é quando nos fazem lembrar o quanto nos lêem frágeis e instáveis quando somos criativas, quando amamos o que fazemos, quando nutrimos sonhos e vamos em busca, quando imprimimos a nossa personalidade no nosso entorno, quando amamos e somos amadas. Paterson é um sujeito pacífico, Laura também é, ambos concordam com o estilo de vida que o outro leva. O que há pra ficar tão incomodada com Laura? Permaneço amando a personagem, permaneço admirando o modo como ela habita o mundo, mas agora compreendo que a minha leitura não é uma leitura comum, que a vida da personagem, seu universo interior e a manifestação da sua criatividade são tratados como inferiores em relação aos de Paterson, fato que jamais teria me ocorrido não fossem as inúmeras críticas de mulheres que admiro.

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