A fundamentação e os limites da violência a partir de Jean-Paul Sartre

Vera Serra Lopes
Revista Caliban issn_0000311
9 min readSep 15, 2016

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caim e abel

Porquê falar de violência? “Ninguém comprometido com o pensamento acerca da história e com a política pode permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou” (H. Arendt, On Violence).

O que vos proponho é reflectir comigo acerca da legitimidade ou limites da violência num contexto político-social, sobretudo através do olhar do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Parece-me que esta reflexão nos pode levar a compreender algumas questões que actualmente vivemos.

É bastante conhecida, no meio académico-político, a polémica defesa da violência por parte de Sartre. O nosso herói vesgo olhou para violência, mas será que a viu bem?

É sobretudo em Cadernos para uma moral, na Crítica da Razão Dialéctica e no prefácio a Os Condenados da Terra de Frantz Fanon que o apelo à violência está presente.

Comecemos pelas ideias de alienação e de opressão, estando presentes no pensamento do filósofo podem levar-nos a uma mais clara e ampla discussão da questão da violência.

Na opressão que é “exploração do homem pelo homem”, “uma classe priva os membros da outra classe da sua liberdade”, esta é reconhecida pelo sistema jurídico. Sartre esclarece-o no contexto da condição dos esclavagistas que, tal como os escravos, nasceram nessa instituição, portanto consideram o seu acto tanto natural como legítimo. Neste sentido, o detentor dos escravos age de boa consciência ou, melhor dizendo, esta consciência é ditada pela lei, a opressão legitimada confere boa consciência.

Simplificando bastante a análise de Sartre, a opressão pode e é frequentemente institucional, sendo legitimada por leis que por várias razões os oprimidos terão de aceitar. A violência não pode então ser pensada sem relação às leis que ela viola. Contudo, quem é violento também reclama o direito a ser violento, ou seja, a violência reclama ser reconhecida como legítima e justificada, eis uma “ética da violência justificando-se a si própria”. Este tipo de violência seria, mais concretamente, uma violência que existe com base na justificação para a sua existência e não a violência como fim absoluto. Se a parte que detém a força, a parte vencedora, determina aquilo que é legitimo, trata-se de romper com isso. O vencedor não se contenta em impedir, pela força, o vencido de recorrer á violência: ele exige deste, enquanto liberdade abstracta, o comprometimento moral de não poder recorrer.

De que serve termos os mesmos direitos sem ter real acesso a estes, ou seja, possibilidade de os concretizar? Eis a hipocrisia da opressão moderna. “o oprimido tem tantos direitos quanto o vencedor, portanto eles são iguais enquanto pessoas morais. Só que ele tem tanto direito com menos posse.” O oprimido é pessoa moral abstracta e objecto concreto. O direito do liberalismo é mistificação pura.

Os oprimidos unem-se através da violência e assim contradizem o direito existente. Enquanto tal, esta será sempre lamentável e punível, mas se esta vencer instaurar-se-á um novo direito, criar-se-á uma nova situação. Esta não é uma força bruta, mas uma liberdade que se quer afirmar, como diz Sartre, “ela não é apenas uma força mas uma liberdade e aquilo que ela opera pela força deve poder ser considerado também como expressão da liberdade” (Sartre, Cadernos).

Sartre distingue força e violência, a força obtém efeitos positivos ao agir conformemente à natureza das coisas; a violência é sempre destruição e a destruição implica uma resistência. Há força quando a acção é conforme a uma legalidade e violência a partir do momento em que a acção é exterior à legalidade. Sarte opõe-se à ideia, à partida verdadeira, segundo a qual a violência é fraqueza. Inicialmente é preciso admitir que há uma supremacia teórica da acção cumprida conformemente às leis sobre aquela que é cumprida contra as leis. Mas eu posso colocar a destruição como meio para atingir um fim superior, relativamente àquilo que (já) é. A violência, tomada como uma espécie de salto esperançoso comporta sempre incerteza, por oposição à certeza da lei e da ordem e é por isso que ela é ou era, em certas situações concretas, justificável.

Sartre pára de observar o acto violento para passar a concentrar-se nas suas condições, remetendo para a escassez. Mas, neste caso, a violência aparece novamente como retaliação contra a violência exercida pelo Outro, a violência é sempre contra-violência (Sartre, Crítica).

A dialéctica hegeliana é a imagem da violência, faz surgir o positivo a partir desta negação da negação, relacionando-o com o todo. A actividade revolucionária é violência, no sentido em que ela é negação da negação. Se há opressão, há um direito que é negado, a negação da negação supõe uma primeira negação. A violência é sempre o outro que a comete, a guerra é sempre defensiva: “apenas a direcção da acção justifica a violência”. O violento está do lado da positividade e assim, negação confunde-se com afirmação e tanto mais a heresia é positiva, mais nós a consideramos negação.

O pensamento de Sartre acerca da violência também se centra no racismo e no colonialismo. Um dos motivos pelos quais, segundo Sartre, temos de ler Os condenados da terra é porque Fanon nos explica, “o mecanismo das nossas alienações”. O que Sartre detecta é a contradição e hipocrisia em que incorriam os cidadãos das metrópoles quando dizem “mas nós não estamos nas colónias”, não se apercebendo de que enriquecem à custa dessas.

A violência de libertação das colónias era a nossa violência “voltada para trás”. Tanto a sua, como a nossa, moral, reprovam esse ódio que eles sentem por nós mas este é “o último reduto da sua humanidade” (pref. Os condenados da terra). Subjugamos através da força e eles devolvem-nos o bumerangue: violência! Sartre, contrapondo-se à “Esquerda Metropolitana” que considerava que os colonos deviam mostrar uma certa finesse e assim provarem que são homens, escreve o prefácio a Os Condenados da Terra de Franz Fanon que constituia um apelo aos franceses para que estes se declarassem a favor dos combatentes argelinos.

Ser violento, segundo Sartre, não significa retornar à nossa bestialidade ou inhumanidade mas sim afirmação do próprio humano. A violência reclama, pela sua própria existência, o direito à violência, esta é, tal como qualquer acção, afirmação de um valor, mas, simultaneamente, sendo esta destrutiva não pode produzir um objecto; é uma arma de destruição, elimina os obstáculos para chegar ao seu fim. Esta implica confiança no Bem, ela quer ordenar e impôr o bem. A violência é sobretudo destruição, não o ponto final da acção.

E assim, à crítica de Camus ao seu tempo: “A terra do humanismo converteu-se nesta Europa desumana”! O que Sartre responderia é que esse humanismo já era a sua origem “desumano” no sentido moral. Temos de ver o nosso apregoado humanismo por aquilo que é, uma “ideologia mentirosa”, uma “requintada justificação da pilhagem”. Sartre, condena a abstracta postulação de universalidade: “Que tagarelice: liberdade, igualdade, fraternidade, amor, honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impedia de fazermos discursos racistas, negro sujo, judeu sujo, etc.” Quão verdade não é isto hoje em dia.

Como dizia Sartre, a Europa tem de matar o colonialista que lhe é interior. Não podemos simplesmente assistir todos os dias aos milhares de pessoas que pedem asilo e fazer tão pouco. Inclusivamente, temos de pensar, como sugere Žižek, no verdadeiro problema. Sermos radicais é, verdadeiramente, irmos à raíz dos problemas; só assim poderemos ser realmente radicais na solução alternativa que propomos.

Há uma ideia que permanece no pensamento de Sartre, a violência enquanto “recusa de sermos olhados”, o que nos permitiria retomar Sartre para compreender uma série de exigências e reivindicações actuais.

Na fase inicial do pensamento de Sartre — onde se insere a sua obra O Ser e o Nada — a violência não é um conceito abordado; contudo, a forma de ser, para e com os outros é fundamentalmente o conflito. O foco do conflito e da intersubjectividade é colocado no olhar do Outro, este é aquele que detém o poder do olhar sobre mim. É o olhar do Outro que, por um lado nos permite percebê-lo como sendo sujeito e, por outro. nos “confere” identidade, uma identidade demasiado rígida face à liberdade que nós somos.

Podemos relacionar este pensamento com a recusa de alguns grupos e/ou indivíduos em serem olhados e identificados pelo Outro, nomeadamente pelas instituições e os seus mecanismos de controlo. E talvez esta associação ou extensão de uma estrutura ontológica, ou seja, uma estrutura fundamental e constitutiva do ser humano, para a actual conjuntura política faça sentido, pois em Cadernos a violência também é definida como “recusa de ser olhado”.

Sobretudo, se esse olhar põe em causa a liberdade que eu mesmo sou. Ele é uma limitação da minha transcendência/abertura, do meu movimento e possibilidade de constituir mundo. O olhar do Outro, sendo este outro o estado, é opressor. A violência é, também, o olhar que transforma o humano em escravo e este em coisa.

Se “a violência é afirmação incondicionada da liberdade.”, em todas as suas vertentes. A minha recusa de ser-no-mundo é a de ser no meio do mundo, ou seja, de ser olhado, de ser algo mais do que pura transcendência, ou seja, liberdade. Eu não quero ser um objecto.

Sartre diz-nos — a propósito da revolta dos trabalhadores no ínicio da revolução industrial — que o instrumento de trabalho contém o olhar do criador, nesse caso, o do explorador que nos compele a utilizá-lo. Neste sentido, a destruição do instrumento de trabalho é a destruição do olhar do opressor e pode ser um passo para a libertação.

Sartre já revelava uma enorme preocupação com as formas institucionais de violência. Desvelar a violência que está na base de certas instituições sociais é uma parte essencial no legitimar a violência dirigida a essas instituições, que é semelhante com o que faz Žižek em Violence. Sartre, tal como, e aliás antes de, Žižek, já tinha alertado para as forças implícitas da violência, ocultadas sob a lei da ordem, é a “violência objectiva sistémica” de que nos fala Žižek, que hoje é o capitalismo.

Por isso, apesar de Sartre defender a violência revolucionária, acaba por reconhecer que a violência terrorista, pode ser “uma experiência que não beneficia ninguém”, sendo “uma das estruras da servidão, como a resignação”, pois não é capaz de suprimir, de facto, a escravatura e a alienação (Cadernos).

É a própria contradição imanente à ética que justifica e legitima a violência. A violência é necessária, mas entrevê-se a libertação desta. Aliás, Sartre prevê essa possibilidade: “a comunicação não é: ela tem de se fazer (…) num universo de violência não se pode conceber um amor puro. A menos que nesse amor esteja contida a vontade de fazer cessar o universo de violência.”

Se, de facto, “a moral deve ser a escolha de um mundo, não de um si.”; isso implica que ao escolher, eu esteja a escolher no lugar da humanidade inteira. E é neste horizonte que a violência deve ser olhada e questionada. Não queremos que o mundo seja violento, por isso a violência como um fim é injustificável. Claro que cada caso tem de ser contextualizado, mas, regra geral, acredito que, cada vez mais é necessária, a procura de outros meios para chegarmos a esse mesmo fim. Seguindo Sarte, se o que escolhemos para nós é a escolha da humanidade inteira e se o que combatemos nasce da força e da opressão, não vamos querer construir um novo mundo fundando-o sob os alicerces da violência.

Como dizia S. Mello Breyner: “vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.” Independentemente da aceitação, mais ou menos crítica, da defesa da violência por parte de Sartre, há sem dúvida uma ideia a reter do seu pensamento: temos de nos comprometer (engagement)! Vivemos num mundo, pelo qual somos responsáveis. Seja como for, mas das duas uma: ou “contribuímos” para a manutenção da ordem actual com tudo o que isso implica ou nos comprometemos com a mudança. E neste contexto a violência pode ser legitima, a violência enquanto destruição da opressão, é esperança, em “um outro homem, de melhor qualidade”. Se não há esperança, a violência torna-se puro maquiavelismo e literalmente “o homem morre”.

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