A Casa Que Nos Abriga

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
3 min readJul 7, 2020

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Por Nydia Bonetti

Foto: Quentin Shih

*

Sou uma casa antiga.
Bastam-me meus próprios fantasmas.

*

A memória é uma casa lotada
que já não me comporta.
Escrevo, antes que definitivamente
se tranquem as portas.
Sou nada do lado de fora
e dentro as paredes ruíram.
Janelas enferrujaram e o teto estala.
As telhas estão trincadas
e copiosamente chove.

*

Este lugar vazio de objetos e vozes
este bolor no muro, esta dor tão visível
que se pode tocar — é minha casa.
Santo lugar onde planto palavras
canteiro estéril
de ausências e concreto
paredes ásperas — caramujos cansados
da casa que carregam.

*

Um pé de quê? Pergunta-me a flor
que não se vê no espelho
no vaso sobre a mesa, longe do rio
— sua casa.

*

Porque faz sol e as pedras queimam os pés
as aves pousam nos telhados de barro.
Que ainda há
telhados e casas / aves famintas / céus. E o barro
que nos protege.
Embora tão frágil, de desfazer na água
de se quebrar no vento.

*

Pretende fazer um poema sem música.
Apanha palavras ao acaso
como quem colhe mangas na beira do rio
e pisa formigas nessa mesma beira.
Que tudo é beira e finda (ou não)
como este rio parece findar ali na esquina
mas não termina, pois tudo segue
e a música nos persegue
e os pássaros pretos mudos no fio, depois
das chuvas, parecem cantar.

*

Diremos que talvez seja tarde demais
mas a flor diz que não.
O que diremos quando à tarde a flor
se extinguir?
Ao rio tão próximo
ao pássaro triste
às três estrelas no céu
em linha reta?
Às sombras que desenham árvores
sobre as montanhas azuis?
Que a noite sempre vem — e apaga
os sonhos da flor?!

*

Na casa da infância
era bonito ver do alto
a enxurrada.

*

Recolher as cinzas, soprar memórias.
É tempo
de esvaziar a casa
que o esquecimento quer entrar
mas não encontra lugar.

*

Agora sabe que aquele que ama e busca
habita seu corpo.
Por isso mergulha
dentro
de si.
Fora é tão longe
_________ vertiginosamente se afasta.
E a casa envelhece iluminada.

***

SOBRE A AUTORA

Nydia Bonetti, 1958, engenheira civil, Piracaia, SP. “Escreve para não enlouquecer — mais.”

Tem alguns de seus poemas publicados no blog Longitudes — (http://nydiabonetti.blogspot.com).

Publicada em diversas revistas e sites literários e culturais: Revista Zunái, Eutomia — Revista de Literatura e Linguística, Germina Literatura, Mallarmargens — http://www.mallarmargens.com/search/label/Nydia%20Bonetti, e outras.

Fez parte da coletânea QASAÊD ILA FALASTIN (Poemas para a Palestina), Selo ZUNAI (http://www.revistazunai.com/editorial/poemas_para_a_palestina.htm), da Antologia Digital Vinagre — Uma antologia dos poetas neobarrocos, e da coletânea 80 balas, 80 poemas (https://www.revistazunai.org/80-balas-80-poemas), entre outras.

Publicada em 2012, pela Coleção Poesia Viva, do Centro Cultural São Paulo, na antologia Desvio para o vermelho (Treze poetas brasileiros contemporâneos), organizada pela poeta Marceli Andresa Becker. (http://goo.gl/sDIiC)

Publicada também em 2012 pelo Projeto Instante Estante, de incentivo à leitura, Castelinho Edições.

Em 2013, lança seu primeiro livro SUMI-Ê pela Editora Patuá,

Em 2015 — Participou da Exposição Poesia Agora, no Museu da Língua Portuguesa, que abarcava diferentes aspectos da poesia de hoje.

Em 2017, lança De Barro e Pedra pela Editora Urutau.

Em 2020 deve lançar Lonjuras pelo Selo Dulcineia Catadora (assim que a pandemia permitir).

Atualmente trabalha na revisão de 6 livros inéditos.

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