Rodrigo Petronio
Revista Caliban issn_0000311
3 min readOct 12, 2016

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A Arte-Vida de Hans Ulrich Gumbrecht

Rodrigo Petronio

Hans Ulrich Gumbrecht é desses pensadores e dessas pessoas de amplas dimensões. Monumentosos, se Guimarães Rosa me permite o surrupio. Desde que conheci as suas obras, a reflexão sobre literatura e a teoria da cultura se alteraram para mim.

Por um lado, seus trabalhos sobre a materialidade da comunicação levaram-me a uma compreensão da literatura para além da tradição interpretativa e hermenêutica, bastante forte no Brasil. Por outro, quando li Produção de Presença, um campo novo se abriu para mim. Um diálogo inesperado entre desvelamento do ser e performance instaurava a literatura em um novo lugar de emergência e de significação. Outros impactos se seguiram, vindos desse alemão afetivo e carismático, um bávaro amante da poesia e dos esportes. Foi a vez de me impressionar com Em 1926, um livro simplesmente inclassificável. Passei a ler tudo o que pude de seus trabalhos.

A obra Stimmung tornou-se uma referência obrigatória para minhas oficinas de escrita criativa e para meus cursos em geral. Gumbrecht conseguira captar nessa obra um dos pontos nucleares da literatura, algo cujo contorno conceitual e a importância poucos teóricos conseguiram situar: a atmosfera. Mais do que isso: encontrara um ponto de intersecção entre as artes. Não no sentido de um sistema das artes, na acepção de Hegel, mas ago mais próximo à uma ontologia das relações. Estava inaugurada uma nova teoria relacional da forma.

Por fim, em Depois de 1945, na minha opinião temos uma obra-prima. Uma narrativa na fronteira entre o memorialismo, a ficção, o ensaio, a crítica literária e a teoria da cultura. Além de tudo isso, nessa obra Sepp conseguiu construir um dos mais poderosas etiologias do mundo contemporâneo. Os conceitos de cronotopos e de latência me acompanham e encontram ressonância em boa parte de minhas pesquisas atuais sobre o fenômeno e a abordagem da literatura. Em outras obras e artigos de Gumbrecht, aprendi a compreender o fato estético como epifania da forma, mais do resultado de uma definição de arte. Arte e forma se tornavam congêneres. O fenômeno estético transcende as categorias emancipadas da arte e migra para os modos de vida, o cotidiano, o esporte, os costumes.

Em 2014, quando da vinda de Sepp para a Bienal do Livro em São Paulo, tive a oportunidade de entrevistá-lo para o jornal O Estado de S.Paulo. Meses depois, tive o privilégio de tê-lo como orientador em parte de meu doutorado, realizado em Stanford. E então a imagem do intelectual que eu tanto admirava à distância se materializou sob a forma de proximidade, convívio e familiaridade. Assumiu a fisionomia de um dos professores mais brilhantes e generosos que tive. As conversas em seu escritório, as orientações, suas aulas e o seu modo de conduzir os debates me marcaram para sempre.

Ao longo da pesquisa de doutorado, desenvolvi uma teoria intitulada teoria dos mesons ou mesologia. Trata-se de uma teoria que havia criado, e que ainda me sentia inseguro em defender. Posso dizer que foi Gumbrecht quem me estimulou a desenvolvê-la e a defender essa teoria, dando mostras de sua valorização da criatividade, dos índices de autoria e das intuições conceituais, ou seja, daquilo que há de mais valioso no pensamento. Sou grato a todos esses momentos em que pude aprender, tanto na vida quanto na obra de Huns Ulrich Gumbrecht, o querido Sepp. Um intelectual que transcende as fronteiras da atividade intelectual, misturando arte e vida, escrita e ensinamento, nas quais a latência daquilo que ainda não é literatura pode ser entendido como o futuro da vida e de suas formas.

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Rodrigo Petronio é escritor e filósofo, autor e organizador de diversos livros. Professor titular da FAAP e pesquisador de pós-doutorado no TIDD|PUC-SP.