A agradável sensação de durar

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311

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@Pedro Marques Pinto

Byung-Chul Han (n. 1959), filósofo sul-coreano nascido em Seul e radicado na Alemanha desde os anos 80 — onde estudou filosofia, literatura e teologia nas Universidades de Munique e Friburgo, tendo-se doutorado em 1994 com uma tese sobre a obra de Martin Heidegger — tem dedicado o seu pensamento aos principais temas e problemas que ocupam as sociedades contemporâneas: a banalidade do amor e da fantasia relativamente à emergência do impulso narcísico, consumista e pornográfico em A Agonia de Eros (2012); as ideias de pressão, desgaste e perturbação no universo do trabalho e da família em A Sociedade do Cansaço (2010); ou a crítica estrutural à democracia, ao sistema capitalista e ao poder totalizador da técnica e das realidades digitais em Psicopolítica (2014) e A Sociedade da Transparência (2014).

o aroma do tempo

No seu mais recente ensaio, O Aroma do Tempo (2016), Chul Han observa que a nossa actualidade é dominada não por uma incessante aceleração do tempo mas, contrariamente, a uma crise temporal assente numa dissincronia (uma descontinuidade), isto é, a atomização do próprio tempo sem rumo nem ordem ou conclusão que o impede de durar (demorar) de forma substancial nas nossas vidas, composto por momentos indistinguíveis e sequenciais, tornando-se aparentemente efémero.

Uma espécie de inquietação mortal porque desorientada, baseada num tempo de pontos (a que Byung-Chul Han chama Punkt-Zeit), destituído de continuidade e caracterizado por pequenos intervalos que exigem um preenchimento do seu vazio intrínseco através de fragmentos sucessivos. O tempo desnarrativiza-se, perde a sua direcção, deambula apenas na infinitude. Mas este fenómeno não implica necessariamente o apregoado fim da narrativa (a sua intriga linear dotada de sentido): para Chul Han, apoiando-se em Lyotard, essa desintegração não redunda numa suposta tragédia apocalíptica, mas antes numa libertação da percepção que devolve ao tempo a sua condição de instante, rompendo com o percurso horizontal e transformando-se numa profundidade vertical. Assim, “o fim do tempo narrativo não tem que conduzir necessariamente a um tempo vegetativo”.

Não obstante, enfrentamos agora uma quebra dessa continuidade temporal. O tempo dispersa-se e entra em crise. Despenha-se porque está em processo de aceleração generalizada. Desta forma, a fim de resolver ou, pelo menos, recuperar este impasse essencial, o filósofo germano-coreano propõe um regresso revitalizante ao modelo da vita contemplativa (conceito que vai beber a autores como Nietzsche, M. Heidegger, Aristóteles, Santo Agostinho ou Tomás de Aquino) em detrimento de uma relativização da vita activa que “pressupõe a perda do mundo e do tempo”.

Contra o tempo da pressa, da meta teleológica e da fugacidade, valoriza-se o olhar contemplativo, demorado e lento. Como afirma Byung-Chul Han, “a demora contemplativa pressupõe que as coisas duram”. A vita activa é aquela que é dominada em absoluto pelo trabalho e por uma vertiginosa acumulação de capital encerrada nos puros limites da dialéctica da produção e do consumo. O homo laborans vê-se inevitavelmente vedado do tempo de ócio, não compreendido na sua formulação actual associado ao descanso ou ao entretenimento passivo, mas reivindicando uma noção aristotélica (a chamada bios theoretikos) fundada na reflexão e na análise estética do mundo.

A arte da contemplação deve assim superar a mera utilidade acarretada pelo trabalho, que nega o conhecimento do belo e a prática da liberdade. A vita contemplativa, para Chul Han, traduz-se numa “práxis da duração”, um lugar de repouso e estabilidade que evita o curso irracional do tempo descontrolado. Pensar e teorizar é já um acto activo em permanente movimento. À revelia de Hannah Arendt, que acredita enfaticamente no milagre da acção como único meio de alcançar a redenção do humano na era moderna, Byung-Chul Han responde com a apologia de uma vida votada ao prazer da contemplação que, muito provavelmente, terá sido responsável pelos “(…) acontecimentos que formam o mundo e a cultura (…)”. Con-templar (estar no templo) significa alcançar a breve eternidade, o espaço privilegiado dos deuses. É um tempo sem tempo, justamente porque estranha a sensação de um vazio inquieto e funcional. Todo o elogio à eloquente harmonia de demorar está contido nesta passagem: “A demora contemplativa concede tempo. Dá amplidão ao Ser, o que é algo mais do que estar ativo. Quando recupera a capacidade contemplativa, a vida ganha tempo e espaço, duração e amplidão.”

A dicotomia estabelecida por Chul-Han, se bem que seja interessante, revela-se no entanto pouco rigorosa para uma compreensão mais profunda dos fenómenos contemporâneos. A distinção entre vita activa, que diminui o ser porque sublinha o valor do trabalho como rotina, e vita contemplativa, que eleva o espírito ao pensamento e à meditação porque desobedece à marcha inexorável do tempo acelerado, poderá ser eventualmente a mesma que separa (ou aproxima?) a teoria da prática, o divino do profano, o reflectir do agir ou a sensibilidade estética e cultural da simples utilidade necessária celebrada pela época da industrialização e da técnica? Será verdade que a contemplação esteja à margem da soberania do tempo? O que diria o filósofo da arte da demora sobre as expressões trabalho intelectual ou actividade artística? Pensar, escrever, explicar ou duvidar não poderão ser entendidos como ofícios da alma ou instrumentos dessacralizados de um labor inscrito na ordem do tempo e não fora da sua trajectória? É porventura uma heresia pensar-se o trabalho (a dimensão activa) ou trabalhar o pensamento (a dimensão contemplativa)? Podemos mesmo perguntar se a fotografia e o cinema, enquanto artes supostamente efémeras e fragmentárias, não terão produzido obras-primas da contemplação que superam a nossa crise temporal. E mais: quais são as consequências de nos afirmarmos como pensadores ou intelectuais? Sabemos que a actual ordem da economia capitalista irá inelutavelmente falir. Mas será que a diabolização do trabalho em oposição à exaltação do pensamento contemplativo poderá ser alternativa válida para resolver a problemática do nosso tempo disperso?

Precisamos apenas de demora e tranquilidade para respirar: um aroma percorre a memória quando tudo o resto está em ruína devastada. A madalena que a personagem de Proust mergulha no chá é uma reconciliação tensa com o tempo que temos de reencontrar.

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