À Tona da Realidade

Ana Queiroz
Revista Caliban issn_0000311
2 min readSep 18, 2017

--

Crónicas de São Miguel

Ponta da Ferraria, Ilha de São Miguel (Açores)

Vasculho na memória momentos semelhantes. E enumero no imenso e elástico pano da mente uma legião de azares com a água, desde bóias viradas do avesso, a correntes inesperadas, cãibras impiedosas, e mergulhos, digamos que, demasiado ambiciosos. No entanto, não posso dizer que estas experiências menos boas me tenham impedido de passar deliciosos momentos deitada ao sol numa praia ou numa piscina. Nada disso. Apenas me mantiveram sempre mais à superfície do que dentro de água, caminhando, a maior parte das vezes, literalmente, um pé atrás do outro, até sentir a água no máximo pela linha dos ombros.

Mas, como não podia deixar de ser, surge sempre algo que se intromete no nosso caminho — como uma barreira de fogo — e nos força a confrontarmo-nos com os nossos medos. Eis que me oferecem, a mim e à minha metade, uma espécie de lua de mel tardia na ilha de São Miguel (Açores), onde, como todos sabem, abunda a água, desde água oceânica, à muito específica água férrea.

O sentido de destino nesta matéria é pesado, como se equilibrasse duas pedras volumosas sobre a curvatura dos pés. Não é que as pedras me impeçam de andar mas, sem dúvida, tornam o meu caminho mais penoso. Concentro-me em arrancar os bocados húmidos e bolorentos de musgo que se reproduzem à volta da minha mente. “Ânimo, miúda”, digo a mim mesma. “Ânimo!” E neste dizer, algo caricato, eu sei, a chuva começa a dissipar-se quando chegamos ao hotel, em Ponta Delgada.

Aparentemente, num só dia podemos passar pelas quatro estações do ano, avisa-nos a eléctrica e mecânica recepcionista, de cabelos louros e aparelho nos dentes. Subimos para o terceiro andar onde fica o quarto. O Fábio toma banho, eu leio em voz alta, sentada aos pés da cama, o itinerário que o conhecido de um conhecido nos enviou, evidente com uma extensa lista de actividades aquáticas. Combinamos então o incombinável — depois do pequeno almoço partimos em direcção à Ferraria para as afamadas piscinas naturais! Sim, as “afamadas piscinas naturais….”, escrevo, sílaba a sílaba, no tal imenso e elástico pano da mente.

O caminho tortuoso entre as ranhuras de basalto principia a aventura. Sinto um claro fascínio por aquele cenário, como se a espuma férrea fosse, ao mesmo tempo, uma fonte de vida e de destruição. Surgem, ao longe, as crateras vulcânicas inundadas pelo Atlântico. Pessoas indistintas nadam nas suas águas geladas. Não consigo resistir a um convite da natureza como este. Ele entra primeiro, fecho as pálpebras com muita força, os punhos, os cotovelos encolhem-se, em bico, junto ao torso. Sinto medo, mas vou. Como sempre, sinto medo, mas vou.

E assim começa a minha viagem a São Miguel.

--

--